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CONTARDO CALLIGARIS
Um Deus para nossos desejos
Interesse pelo "Código
Da Vinci" manifesta a
procura de um Deus que
goste de nossos desejos
e de nossos prazeres
OS EX-VOTOS são objetos oferecidos e expostos em igrejas e
capelas para comemorar um
favor que foi pedido a Deus ou a um
santo e que Deus ou o santo, generosamente, concederam.
Em geral, são de três tipos.
Há quadros que representam uma
situação penosa em que alguém apelou para a divindade, fez uma promessa e foi salvo: uma criança doente, marinheiros num naufrágio, um
incêndio. Quase sempre, comportam a data, a inscrição "V.F.G.A."
("votum feci, gratiam accepi", fiz um
voto e recebi uma graça) e o nome do
beneficiado.
Há pequenas figuras de prata que
representam uma parte do corpo
que foi curada (perna, olhos, rosto,
barriga etc.), um militar que voltou
vivo da guerra ou uma casa. E há corações prateados, que expressam
uma gratidão menos específica.
Os ex-votos mais velhos são removidos das igrejas para dar espaço aos
novos. Alguns chegam às lojas dos
antiquários e, enfim, às mãos de colecionadores enternecidos não pela
qualidade artística dos objetos (que
é mínima), mas por seu valor humano: eles são concentrados de medo,
sofrimento, esperança e fé, metáforas poéticas das festas, das penas e
das incertezas da existência.
Voltei das férias com uma pequena coleção de ex-votos. O que me
surpreende é que o pedido que produziu a promessa é sempre uma necessidade básica: salvar a vida, estancar a doença, garantir um teto.
Claro, santo Antônio deve receber
votos e promessas de muitos que
buscam namoros e casamentos. E
conheço alguém que, há tempo (embora sem sucesso), pede a Deus os
números certos para ganhar na loteria. No entanto, esses pedidos mais
frívolos não aparecem nos ex-votos.
Suponho que, nesses casos, os agradecimentos se escondam nos corações "genéricos" e discretos que
mencionei antes.
Seja como for, na nossa relação
com santos e deuses, pedir socorro é
permitido na necessidade, mas é duvidoso e envergonhado quando se
trata de satisfazer desejos. Não é
bem-visto atarefar os santos com
vontades fúteis, atrás das quais talvez estejam sentimentos pouco nobres (vaidade, cobiça, sede de poder
e por aí vai).
Pede-se a Deus e aos santos a vida,
a saúde e o bem (sobretudo o dos outros), ao passo que, para conseguir o
relógio de Brad Pitt naquela propaganda, um pacto com o Diabo parece
obviamente mais apropriado.
Essa divisão de tarefas tem um
custo considerável. Ela se alimenta
na idéia de que o cristianismo (se
não o monoteísmo, em geral) seria
sisudo, necessariamente anti-hedonista: religião não rima com prazer,
e os prazeres seriam sempre culpados. É como se as disciplinas clássicas do controle de si e da moderação
(a própria filosofia de Epicuro) tivessem sido substituídas por uma
moral que atribui pontos só ao sofrimento e ao sacrifício ou aos júbilos
da contemplação e da celebração de
Deus e da obra divina. As alegrias da
experiência humana (a começar pelos prazeres do corpo) parecem ser
ninharias, perdas de tempo.
Especialmente no mundo contemporâneo, essa divisão de tarefas
deixa ao Diabo um espaço considerável, se não prioritário.
Deus perde terreno nas sociedades urbanas desenvolvidas, regradas
pela variedade dos desejos de coisas
supérfluas: se ele é nosso interlocutor para as coisas "sérias", a competência em matéria de desejo e prazeres fica com o demônio.
Ora, hoje, em Milão, visitar o cenáculo de Leonardo é impossível sem
reservas feitas com um mês de antecedência: os turistas escrutam a figura de João e o espaço em forma de
"V" que separa Cristo do apóstolo,
constatam a ausência do cálice na
mesa etc. Em suma, eles querem saber se é verdade, como diz "O Código Da Vinci", que Cristo se casou
com Madalena.
Desde o Concílio de Nicéia (em
325), a igreja tenta conciliar a divindade com a humanidade de Cristo.
Para os docetistas, o corpo de Cristo
era uma ilusão ótica. Para os arianos,
a união de homem e Deus era impossível. Para Luciano de Samósata,
Cristo era homem, portanto não podia ser Deus. Todos condenados.
Será que os turistas de Milão, leitores do "Código Da Vinci", são novos heréticos? Pode ser. No entanto,
talvez eles procurem apenas uma
religião para nossos tempos: se eles
imaginam um Cristo mais humano
do que manda a ortodoxia, se eles levantam a hipótese de que ele tenha
amado uma mulher e conhecido os
prazeres da carne, é porque gosta
riam que não apenas a necessidade
mas também o desejo pudesse pertencer a Deus. Não ao Diabo.
ccalligari@uol.com.br
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