São Paulo, sexta-feira, 15 de junho de 2007

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Cinema/estréia

"Cão sem Dono" flagra o medo de amar

Para o diretor Beto Brant, filme retrata "a travessia de uma dor" e reflete dificuldade geracional de "assumir emoções"

Respeitado pela crítica por filmes como "O Invasor", Brant diz que fez filme voltado "para dentro" e se diz "desapontado" com o país

Divulgação
Os atores Tainá Müller e Júlio Andrade vivem o romance entre uma modelo e um tradutor em crise no longa "Cão sem Dono", de Beto Brant e Renato Ciasca


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois da primeira noite com a aspirante a top Marcela (Tainá Müller), o tradutor em crise existencial Ciro (Júlio Andrade) se comporta como quem não ligará no dia seguinte. Nem em nenhum outro.
Desligado do mundo, Ciro não tem telefone, não pede o número de Marcela nem acena com um novo encontro.
No entanto, os encontros dos dois serão muitos, porque o amor é o futuro do sexo em "Cão sem Dono", longa-metragem de Beto Brant e Renato Ciasca, que estréia hoje, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Baseado no livro "Até o Dia em que o Cão Morreu" (Companhia das Letras), de Daniel Galera, o filme tomou o nome de "Cão sem Dono" porque essa expressão, para Brant, expressa "um estado de espírito".
É o estado de espírito de quem teme a entrega amorosa ou o que ela exige de coragem para "assumir suas emoções, sua história, suas escolhas", afirma Brant, 43.
"É um traço de geração. É complicado se descobrir amando, precisando estar presente, querendo saber [do outro]", diz o diretor. Ao tratar desse tema, Brant, que conquistou o respeito da crítica com seus quatro longas anteriores, diz que realizou um filme "intimista", deixando de lado o foco na complexidade socioeconômica brasileira firmado em "O Invasor".

Respiro
"A gente precisou se voltar para dentro, para respirar, assim como ele [o personagem]. Há um desapontamento com as perspectivas de transformação da sociedade brasileira, de ela ser mais justa. Há uma falência dessa condição", afirma Brant.
"Cão sem Dono" foi filmado em Porto Alegre (onde o filme já está em cartaz), cenário do romance literário original, cuja adaptação para o cinema é assinada por Brant, Ciasca e pelo escritor Marçal Aquino.
No Rio Grande do Sul, a equipe repetiu os preceitos já característicos do trabalho de Brant e de seus freqüentes colaboradores. "Não sabemos aonde vamos chegar, mas sabemos como queremos ir até lá", resume Ciasca, que atua habitualmente como produtor e volta à direção depois de 20 anos de sua estréia, também ao lado de Brant, com o premiado curta-metragem "Aurora" (1987).
O privilégio ao percurso em lugar do resultado final "não quer dizer submeter-se ao acaso da filmagem", esclarece Brant, mas sim ter a disponibilidade de incorporá-lo, quando uma fala, uma atitude ou um gesto imprevistos contarem a favor do filme.
"Vamos para o set absolutamente preparados e com o roteiro na mão, mas também com a consciência de que o filme não está no papel. Não pode estar. Por isso, temos de deixar abertos os cinco sentidos."
Em "Cão sem Dono", o acaso e os sentidos conspiravam favoravelmente na cena em que Ciro retorna à casa dos pais, depois de um surto depressivo.
O ônibus "real" tomado pelo personagem possuía um desses assentos em que o passageiro viaja de costas para o motorista. Isso contribuiu para que Brant e Ciasca traduzissem cinematograficamente o regresso emocional de Ciro.

Travessia
Da janela do ônibus, as imagens mostram a cidade ficando para trás, enquanto Ciro avança como quem recua. "É um momento duro para ele. Ele zera tudo na vida, para fazer a travessia dessa dor", diz Brant.
A dor de Ciro surge da descoberta do amor por Marcela, num momento que parece ser tarde demais. Insegura quanto ao envolvimento dele e com um grave problema de saúde, ela se afasta, para atravessar sozinha a própria dor.
A trajetória dos protagonistas é pontuada pela presença de dois outros casais -formados pelos pais de Ciro (Roberto Oliveira e Sandra Possani) e um motoboy (Márcio Contreras) e sua mulher (Janaína Kremer), que se tornam amigos da modelo e do tradutor, depois de um incidente de trânsito envolvendo Marcela.
Há ainda o personagem de Elomar (Luiz Carlos Coelho), porteiro do edifício de Ciro, fiel conselheiro e artista nas horas vagas, e Churras, o cachorro vira-lata de quem o tradutor se sente mais amigo do que dono.
Todos eles contribuem para descrever, como define Brant, "a construção do gesto de Ciro até o momento da entrega".


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