São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2010

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

História romântica


"500 Dias com Ela" é uma história sobre o amor. Mas é também um filme sobre os homens e para os homens


ASSISTI A "500 DIAS COM ELA", filme simpático e "indie" sobre história de amor convencional. Digo convencional no sentido preciso do termo: eles encontram-se e apaixonam-se; com o tempo, desencontram-se e afastam-se.
E é ele, Tom (Joseph Gordon-Levitt), escritor de frases-clichê para cartões festivos, quem relembra a história de amor que teve com Summer (Zooey Deschanel). O dia em que se conheceram. As ansiedades próprias dos primeiros tempos. As descobertas. As rotinas. As pequenas dissonâncias que começaram a minar a relação. As discussões. As reconciliações. As discussões sem reconciliações. O adeus.
Sorri de compaixão. Por Tom, o herói romântico. A compaixão primeira deve-se à identificação primeira. Acompanhar a história de Tom é relembrar as histórias pessoais que foram cumprindo o mesmo cardápio: da euforia ao impasse; do impasse à angústia; da angústia à despedida.
O filme de Marc Webb é um espelho de memória onde nós, homens, vamos revivendo a nossa simiesca conduta. "Simiesca"? Não foi lapso: sobre as mulheres, é impossível generalizar. Cada mulher que encontramos apaga todas as certezas sobre a anterior. Mas os homens são o que são: macacos românticos, dispostos a tudo para impressionar e conquistar a dama.
Há vários anos penso escrever um livro sobre o assunto. Uma espécie de "História Romântica da Humanidade". Só para mostrar como Marx estava errado. Não é a luta de classes que faz avançar o mundo. É a luta dos sexos.
Ou, adaptando a linguagem marxista, o "motor da história" são os homens; e a forma como eles se entregam a loucuras várias em nome das mulheres que cobiçam e amam. Não é por acaso que o cânone da literatura ocidental começa com a "Ilíada". É possível analisar a obra homérica com "paradigmas" de intocável beleza filosófica. Perda de tempo. A "Ilíada" é a história de como os homens estão dispostos a tudo, até à guerra, por causa de uma mulher.
E se assim é com a "Ilíada", a comédia da espécie continua com a "Odisseia". Sim, é possível persistir em modelos de respeitável profundidade teórica.
Nova perda de tempo. A "Odisseia" é a história de como os homens estão dispostos a tudo, até à errância mais penosa, para regressarem a casa. Para regressarem aos braços da mulher que amam.
Por isso estranho as lamentações femininas. Os homens são estranhos ao romantismo, dizem elas. Só as mulheres percebem do assunto com certo grau de intimidade, acrescentam.
Mitos. Que, como todo mito, não sobrevivem à evidência empírica. Meus amigos dão pena. Eu dou pena. Damos todos, como o herói do filme, pela forma idealizada como olhamos para as mulheres.
René Girard, filósofo pouco lido mas já editado no Brasil, chamou "mentira romântica" à necessidade de absolutizarmos sempre algo, ou alguém, como forma de mitigar nossa incompleta condição.
Os homens são especialistas nessa "mentira". Por causa dela, fizeram guerras, subjugaram povos, lançaram-se em viagens lunáticas.
Mas também deixaram páginas gloriosas de poesia. Pintaram frescos ou telas. E compuseram quantidades obscenas de música. Tudo por um beijo. Por uma alcova. Por um pouco de romance. Cada macaco tem seu amendoim.
"500 Dias com Ela" é uma história sobre o amor. Sobre o seu princípio e o seu fim. Mas é também um filme sobre os homens e para os homens, mostrando na perfeição como eles nunca aprendem. Felizmente. E como depois das ilusões e das desilusões, eles estão sempre prontos para mais. Mesmo que se recusem a mais.
Porque os dias passam, anônimos e vulgares. Mas surge um momento, uma tarde, uma cósmica coincidência, que recoloca o calendário no princípio. O filme termina com Tom, desolado e só, depois dos 500 dias com Summer. Mas o filme também termina com um começo: o primeiro dia de um novo encontro. De uma nova história. De uma nova mulher. O primeiro dia dos 50 seguintes. Ou dos 500. Ou dos 5.000. Quem sabe?
Ninguém. Em matéria de amor, avançamos entre a ilusão e a ignorância. Nem poderia ser de outra forma.

jpcoutinho@folha.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho



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