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CINEMA/"CAMELOS NÃO CHORAM"
Indicado ao Oscar, filme retrata a dor e o sofrimento do homem pelo prisma do animal
Documentário sobre camelos remete a Bresson
CLAUDIO SZYNKIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Há algo sobre os bichos que o
cinema ainda não conseguiu
descobrir. Visando conseguir,
uma tendência em voga é refletir a
existência humana via experiência de outros mamíferos. Tudo é
carne. Humanos encarnam feições selvagens, bichos parecem
ganhar sentimentos humanos.
"Camelos Também Choram"
continua esse tipo de especulação.
Mas, diferentemente de outros, a
carga metafórica não pesa. Humanos e outros bichos coabitam,
beneficiam-se mutuamente e vão
vivendo. Só. O filme se ajusta numa linha de cinema mais antiga,
nem por isso menos intensa. No
interior da Mongólia, uma família
cria camelos e ovelhas, em ciclos
de ordenha e corte. A captação da
imagem dos camelos se confunde
com o olhar do francês Robert
Bresson para um burro, no seu "A
Grande Testemunha" (1966).
Tanto o olhar dos diretores Davaa e Falorni para os camelos
quanto o de Bresson para o burrinho são de generosidade, mas revelam uma ironia: na face e corpos desses mamíferos não há representação de nada, mas parece
haver. São formas vivas, mas alienadas: grandes testemunhas da
vida humana que, na verdade, nada testemunham. São opacos,
mas parecem refletir ou reproduzir dor e pureza humanas, conversar conosco. Aqui está o encanto. Os filmes respeitam o mistério e mergulham nas carcaças
dos animais para criar sua lógica
de imagens.
Em "Camelos Também Choram", indicado ao Oscar de documentário, os humanos, em relato
real, mas com voltagem ficcional,
controlam a rotina dos bichos.
Mas é um modo de vida sintonizado: homens têm um pouco dos
camelos e vice-versa nessa existência lenta, escondida em cortinas de aridez geográfica.
O contrato entre homem e bicho é flagrado na relação que há
entre narração e câmera. A narração, seca, se atém ao mínimo no
regime cotidiano e sua metodologia empírica, que parece herdada
de gerações remotas. Resumindo,
se funda numa descrição do artesanato cotidiano da aldeia. Logo,
não é por acaso que a câmera é regida em espécie de artesanato visual. Um artesanato da simplicidade de planos cuja pretensão é
enxergar, acompanhar seres e
paisagens, em movimentos rudimentares e funcionais.
A partir dessa atmosfera rústica,
meio medieval, radiografada e ordenada por narrativa e câmera, o
filme realmente torna-se sobrenatural. É quando sugere que o cinema é um terreno arqueológico
maluco, que cruza tempos e lugares a partir de uma máquina de
imagens e pulsações que agridem
nossa percepção da história e
brincam com suas balizas. A aldeia é filmada como uma espécie
de órgão de estação espacial cravada em um pedaço isolado de
mundo, com certo traço de ficção
científica "velha" nas fachadas de
habitações poucas e brancas.
Coincide com a visão de George
Lucas para o lugar em que morava Luke Skywalker, em "Guerra
nas Estrelas".
Os dois filmes, como os de Manoel de Oliveira, são articulados
em complexos jogos de ilusão que
se originam da relatividade e engendramento de conceitos como
tempo e espaço. Passado, futuro.
Aonde e quando estamos?
Camelos Também Choram
Die Geschichte Vom Weinenden Kamel
Direção: Byambasuren Davaa/Luigi Falorni
Produção: Alemanha/Mongólia, 2003
Com: Uuganbaatar Ikhbayar, Janchiv Ayurzana
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco e Reserva Cultural
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