São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 2005

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CINEMA/"CAMELOS NÃO CHORAM"

Indicado ao Oscar, filme retrata a dor e o sofrimento do homem pelo prisma do animal

Documentário sobre camelos remete a Bresson

CLAUDIO SZYNKIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Há algo sobre os bichos que o cinema ainda não conseguiu descobrir. Visando conseguir, uma tendência em voga é refletir a existência humana via experiência de outros mamíferos. Tudo é carne. Humanos encarnam feições selvagens, bichos parecem ganhar sentimentos humanos.
"Camelos Também Choram" continua esse tipo de especulação. Mas, diferentemente de outros, a carga metafórica não pesa. Humanos e outros bichos coabitam, beneficiam-se mutuamente e vão vivendo. Só. O filme se ajusta numa linha de cinema mais antiga, nem por isso menos intensa. No interior da Mongólia, uma família cria camelos e ovelhas, em ciclos de ordenha e corte. A captação da imagem dos camelos se confunde com o olhar do francês Robert Bresson para um burro, no seu "A Grande Testemunha" (1966).
Tanto o olhar dos diretores Davaa e Falorni para os camelos quanto o de Bresson para o burrinho são de generosidade, mas revelam uma ironia: na face e corpos desses mamíferos não há representação de nada, mas parece haver. São formas vivas, mas alienadas: grandes testemunhas da vida humana que, na verdade, nada testemunham. São opacos, mas parecem refletir ou reproduzir dor e pureza humanas, conversar conosco. Aqui está o encanto. Os filmes respeitam o mistério e mergulham nas carcaças dos animais para criar sua lógica de imagens.
Em "Camelos Também Choram", indicado ao Oscar de documentário, os humanos, em relato real, mas com voltagem ficcional, controlam a rotina dos bichos. Mas é um modo de vida sintonizado: homens têm um pouco dos camelos e vice-versa nessa existência lenta, escondida em cortinas de aridez geográfica.
O contrato entre homem e bicho é flagrado na relação que há entre narração e câmera. A narração, seca, se atém ao mínimo no regime cotidiano e sua metodologia empírica, que parece herdada de gerações remotas. Resumindo, se funda numa descrição do artesanato cotidiano da aldeia. Logo, não é por acaso que a câmera é regida em espécie de artesanato visual. Um artesanato da simplicidade de planos cuja pretensão é enxergar, acompanhar seres e paisagens, em movimentos rudimentares e funcionais.
A partir dessa atmosfera rústica, meio medieval, radiografada e ordenada por narrativa e câmera, o filme realmente torna-se sobrenatural. É quando sugere que o cinema é um terreno arqueológico maluco, que cruza tempos e lugares a partir de uma máquina de imagens e pulsações que agridem nossa percepção da história e brincam com suas balizas. A aldeia é filmada como uma espécie de órgão de estação espacial cravada em um pedaço isolado de mundo, com certo traço de ficção científica "velha" nas fachadas de habitações poucas e brancas. Coincide com a visão de George Lucas para o lugar em que morava Luke Skywalker, em "Guerra nas Estrelas".
Os dois filmes, como os de Manoel de Oliveira, são articulados em complexos jogos de ilusão que se originam da relatividade e engendramento de conceitos como tempo e espaço. Passado, futuro. Aonde e quando estamos?


Camelos Também Choram
Die Geschichte Vom Weinenden Kamel     
Direção: Byambasuren Davaa/Luigi Falorni
Produção: Alemanha/Mongólia, 2003
Com: Uuganbaatar Ikhbayar, Janchiv Ayurzana
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco e Reserva Cultural


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