São Paulo, quinta-feira, 15 de julho de 2010

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NINA HORTA

Alcachofras castradas


Tudo isso só para dizer que o Fasano me agrada e, fosse rica, comeria lá dia sim, dia não. Para não enjoar, é claro
FUI AO Fasano comer as tais minialcachofras anuais que eles importam de Veneza. O primeiro broto da alcachofra é central, como a estrela no topo de um pinheirinho. É cortado, tenro, castrado, daí o nome "castraure", para que a planta dê tudo de si, para os lados, muitas e muitas alcachofras.
Esqueci de perguntar por que não se faz isso aqui, também, evitando a viagem mares ou céus afora. São espécies diferentes? "Google it" e é possível até ver a ilha de Sant'Erasmo onde são colhidas.
Chego em casa e vou procurar mais sobre o assunto, afinal, meu contato com as tais castradinhas não passa desse fugaz encontro, uma vez por ano, no Fasano.
E encontro livros italianos bem antigos, páginas amareladas. Vai me dando uma saudade de mim mesma e do tempo em que tudo era um deslumbre a clarear a grande ignorância. Que bom foi descobrir a comida, pouco a pouco, a informação pequena. Não estou reclamando dos computadores, foi o melhor trenzinho elétrico debaixo da nossa árvore, sem dúvida.
Mas os livros. Tudo estava a ser pesquisado, nos tornamos ingleses, americanos, pois aqui o assunto "comida" era cri-cri até nas faculdades. E, de repente, achávamos na Livraria Cultura ou na Livraria Francesa um livro bom de verdade. Japonês, traduzido para o inglês, por exemplo. Todas as palavras eram novas, até sushi, imaginem!
Por causa do livro japonês, comecei a ficar freguesa do Largo da Batata, em Pinheiros. Havia a Odette Kajibata, com as melhores frutas e verduras e uns tofus, uns edamame e brotos de bambu que, feitos em casa, tinham cheiro de macaco, a essência do mistério. Coisas que ela só explicava com muita má vontade.
A casa Mizumoto punha a mesa, toda a louça japonesa que quiséssemos mais aqueles balões de papel de arroz, muito antes de entrarem na moda, e lixas para raspar bonito (o peixe).
Uma vez, andando por ali sem lenço nem documento, juro, saltou um peixão na minha frente, na calçada, vindo de um tanque da peixaria, como a me dizer que existiam, sim, ingredientes frescos, eu é que não sabia procurar. E, atrás dele, uma japonesa velha, enrugada, baixinha, pernas tortas, com uma rede na ponta de um bambu para resgatar o bicho.
Hoje a Liberdade tem tudo, mas que novidade me pareciam as chaleiras, os chás, era um prazer não saber para aprender. E, como as coisas vinham mais devagar, havia tempo de solidificá-las, guardá-las de modo a fazerem parte de nós.
Bom, voltando às alcachofras castradas, pedimos que fossem servidas com uma massinha, como no ano atrasado. (Chama-se fregole, e tem no empório Santa Luzia.)
Para falar a verdade, nem precisava das "castraure". Só a massa com um cheiro que não consegui detectar, um cheiro macio, untuoso, perfumado, acho que era cheiro de manteiga e queijo muito bons. Excepcional. Resultado de muito trabalho e perseverança dos Fasano, daquele bom e risonho serviço, do lobby com jeito de usado (poltronas de couro descorado, até rasgado, o "shabby chic" que sempre me seduz). Descobre-se assim a alma de um restaurante.
As alcachofras e a massa nunca ficariam melhores do que ali, naquela casa italiana. A arquitetura não esmaga a hospitalidade. Tudo isso só para dizer que o Fasano me agrada e, fosse rica, comeria lá dia sim, dia não. Para não enjoar, é claro. Ah, esqueci de contar do mil-folhas. Resolvi que só comeria daquele até o fim da vida. Perfeito demais.

ninahorta@uol.com.br


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