São Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Negócio da China


As artes fazem cada vez menos sentido se já não nos resta outro ideal além do lucro

PODE SER constrangedor o fascínio dos empresários ocidentais pela China.
O que está embutido no deslumbramento de última hora não é a riqueza da cultura ou do idioma milenar, que eles até tentam balbuciar em nome dos negócios com os chineses, mas o oportunismo e a ganância de quem se depara com um mundo livre de restrições ao lucro e dos direitos que o trabalhador parecia ter conquistado no Ocidente -e que responderiam pelo encarecimento dos produtos submetidos a contrapartidas trabalhistas.
Todo mundo sabe que as condições de trabalho na China são terríveis (não menos do que a miséria na periferia do Ocidente, eles poderiam argumentar) e que só isso permite ao país crescer num ritmo avassalador. Todo mundo sabe que, se a China continuar crescendo e as condições de trabalho se tornarem menos vergonhosas (se cada chinês puder comprar um carro, por exemplo), as chances de sobrevivência do planeta em breve estarão seriamente reduzidas. Mas ninguém está nem aí. Enquanto houver lucro.
É essa constatação, entre outras, que informa indiretamente um pequeno livro publicado na França com o objetivo manifesto de polemizar: "Contra François Jullien", de Jean François Billeter (editora Allia). Jullien é um filósofo e sinólogo conhecido e celebrado no meio universitário francês, mas não o suficiente para provocar a ira de um manifesto. Um dos seus maiores pecados teria sido pôr suas teses sobre a China (de resto, extremamente sofisticadas e interessantes) a serviço do empresariado ocidental -sobretudo em palestras e em livros como "Tratado da Eficácia", publicado no Brasil pela editora 34, e o recente "Conferência sobre a Eficácia" (editora P.U.F.), ainda sem tradução.
Jullien se serve da China como de um ponto de vista exterior, em contraposição ao Ocidente, que lhe permite refletir de fora sobre a tradição ocidental. Michel Foucault utilizava a noção de "heterotopia" para falar de um "lugar outro", um deslocamento que, à maneira de um espelho, permitiria repensar o lugar onde você está, só que de fora, por oposição e comparação. Jullien fez da China a sua heterotopia.
Jean François Billeter o acusa de ter inventado uma China fictícia, que não corresponde à realidade. Jullien teria reduzido e identificado toda a variedade e as contradições da história e do pensamento chinês a um bloco monolítico determinado pela hegemonia da tradição neoconfucionista imposta ao longo dos séculos pela ordem imperial. Um mundo onde, por não haver transcendência (onde todas as relações são geridas pelo respeito à hierarquia e por uma concepção pragmática do possível), também não daria para imaginar ou lutar por um ideal (de liberdade, por exemplo). Assim, ele teria idealizado uma China em essência, em estado uniforme e de pureza, por oposição ao Ocidente, como se não houvesse nem contaminações exteriores nem resistências internas.
É fácil entender a posição de Jean François Billeter, ainda mais num momento em que a China, para preservar o poder que garante o ritmo do crescimento econômico sem questionamentos internos, vive um clima de restauração da tradição neoconfucionista. Seu texto é político na medida em que está preocupado em denunciar a opressão e chamar a atenção para a existência do dissenso amordaçado pela idéia mítica de uma cultura uniforme, totalmente diversa do Ocidente.
Se por um lado as preocupações de Billeter são pertinentes, por outro ele parece ignorar as conseqüências políticas do próprio texto de François Jullien. Ao usar a China como "heterotopia" em oposição ao Ocidente, o filósofo não está justificando o despotismo chinês.
Antes de significar o elogio de um modelo oriental totalmente impermeável ao Ocidente (o que seria suicida e contraditório no caso de um filósofo formado na tradição helenista), a concepção de um mundo que se impõe em oposição absoluta a alguns princípios fundamentais do pensamento ocidental serve como alerta sobre o que temos a perder.
Não significa que não haja contaminações, mas o contrário: que nós, no Ocidente, respaldados na falência do projeto iluminista, já obedecemos a valores análogos aos da tradição neoconfucionista imposta pela ordem imperial. Já não nos é permitido imaginar o que não existe ou não tem utilidade concreta, uma vez que somos regidos pela imanência do mercado. As artes, como foram concebidas pela modernidade no Ocidente, por exemplo, fazem cada vez menos sentido, se já não nos resta nenhum ideal além do lucro.


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