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BERNARDO CARVALHO
Negócio da China
As artes fazem cada
vez menos sentido se já não nos resta outro ideal além do lucro
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PODE SER constrangedor o fascínio dos empresários ocidentais pela China.
O que está embutido no deslumbramento de última hora não é a riqueza da cultura ou do idioma milenar, que eles até tentam balbuciar
em nome dos negócios com os chineses, mas o oportunismo e a ganância de quem se depara com um mundo livre de restrições ao lucro e dos
direitos que o trabalhador parecia
ter conquistado no Ocidente -e que
responderiam pelo encarecimento
dos produtos submetidos a contrapartidas trabalhistas.
Todo mundo sabe que as condições de trabalho na China são terríveis (não menos do que a miséria na
periferia do Ocidente, eles poderiam
argumentar) e que só isso permite
ao país crescer num ritmo avassalador. Todo mundo sabe que, se a China continuar crescendo e as condições de trabalho se tornarem menos
vergonhosas (se cada chinês puder
comprar um carro, por exemplo), as
chances de sobrevivência do planeta
em breve estarão seriamente reduzidas. Mas ninguém está nem aí. Enquanto houver lucro.
É essa constatação, entre outras,
que informa indiretamente um pequeno livro publicado na França
com o objetivo manifesto de polemizar: "Contra François Jullien", de
Jean François Billeter (editora
Allia). Jullien é um filósofo e sinólogo conhecido e celebrado no meio
universitário francês, mas não o suficiente para provocar a ira de um
manifesto. Um dos seus maiores pecados teria sido pôr suas teses sobre
a China (de resto, extremamente sofisticadas e interessantes) a serviço
do empresariado ocidental -sobretudo em palestras e em livros como
"Tratado da Eficácia", publicado no
Brasil pela editora 34, e o recente
"Conferência sobre a Eficácia" (editora P.U.F.), ainda sem tradução.
Jullien se serve da China como de
um ponto de vista exterior, em contraposição ao Ocidente, que lhe permite refletir de fora sobre a tradição
ocidental. Michel Foucault utilizava
a noção de "heterotopia" para falar
de um "lugar outro", um deslocamento que, à maneira de um espelho, permitiria repensar o lugar onde você está, só que de fora, por oposição e comparação. Jullien fez da
China a sua heterotopia.
Jean François Billeter o acusa de
ter inventado uma China fictícia,
que não corresponde à realidade.
Jullien teria reduzido e identificado
toda a variedade e as contradições
da história e do pensamento chinês
a um bloco monolítico determinado
pela hegemonia da tradição neoconfucionista imposta ao longo dos séculos pela ordem imperial. Um
mundo onde, por não haver transcendência (onde todas as relações
são geridas pelo respeito à hierarquia e por uma concepção pragmática do possível), também não daria
para imaginar ou lutar por um ideal
(de liberdade, por exemplo). Assim,
ele teria idealizado uma China em
essência, em estado uniforme e de
pureza, por oposição ao Ocidente,
como se não houvesse nem contaminações exteriores nem resistências internas.
É fácil entender a posição de Jean
François Billeter, ainda mais num
momento em que a China, para preservar o poder que garante o ritmo
do crescimento econômico sem
questionamentos internos, vive um
clima de restauração da tradição
neoconfucionista. Seu texto é político na medida em que está preocupado em denunciar a opressão e chamar a atenção para a existência do
dissenso amordaçado pela idéia mítica de uma cultura uniforme, totalmente diversa do Ocidente.
Se por um lado as preocupações
de Billeter são pertinentes, por outro ele parece ignorar as conseqüências políticas do próprio texto de
François Jullien. Ao usar a China como "heterotopia" em oposição ao
Ocidente, o filósofo não está justificando o despotismo chinês.
Antes de significar o elogio de um
modelo oriental totalmente impermeável ao Ocidente (o que seria suicida e contraditório no caso de um
filósofo formado na tradição helenista), a concepção de um mundo
que se impõe em oposição absoluta a
alguns princípios fundamentais do
pensamento ocidental serve como
alerta sobre o que temos a perder.
Não significa que não haja contaminações, mas o contrário: que nós,
no Ocidente, respaldados na falência do projeto iluminista, já obedecemos a valores análogos aos da tradição neoconfucionista imposta pela ordem imperial. Já não nos é permitido imaginar o que não existe ou
não tem utilidade concreta, uma vez
que somos regidos pela imanência
do mercado. As artes, como foram
concebidas pela modernidade no
Ocidente, por exemplo, fazem cada
vez menos sentido, se já não nos resta nenhum ideal além do lucro.
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