São Paulo, Quarta-feira, 15 de Setembro de 1999
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MARCELO COELHO

Cia. do Latão ilumina a Razão no Centro Cultural


Chaveiros, encanadores, eletricistas, mecânicos de automóvel: esses profissionais pertencem ao que se convencionou chamar, não sei se por eufemismo ou violência, de "classes subalternas" da sociedade.
Mas eles têm uma vantagem diante do assalariado comum. Quando alguém precisa de seus serviços, é porque está numa situação de emergência. A balança do poder então se inverte: todo sujeito das "classes superiores" já implorou, sem sucesso, o socorro de um eletricista ou acompanhou, de coração aos saltos, as opiniões pessimistas, reticentes e laboratoriais de um técnico em computadores.
Em "Ensaio sobre o Latão", peça em cartaz no porão do Centro Cultural São Paulo, há uma cena desse tipo. Na peça, vemos uma companhia teatral ensaiando um texto clássico ("Hamlet") e discutindo as relações entre o teatro e a realidade.
Aí entra em cena um personagem importantíssimo: o Iluminador. Está fazendo os ajustes de luz para a estréia da peça. Autoritário, objetivo, técnico, ele quebra não só a dramaticidade do texto shakespeariano como também as inquietações teóricas em que se debate a companhia.
Naquele momento, ele rege o espetáculo. Seu repentino poder se choca, entretanto, com a materialidade do ofício: ajustando uma lâmpada, sofre um acidente cômico. Não posso contar mais, já estou estragando a surpresa, mas há outras, que dão ao iluminador um papel conclusivo na peça.
Só para comentar direito essa cena, eu precisaria de um artigo inteiro. É que "Ensaio Sobre o Latão" consegue, a cada fala, a cada momento, articular vários níveis de significado, sem nunca perder a inteligibilidade. É uma peça ao mesmo tempo transparente e complexa.
Observe-se apenas o seguinte: um técnico "subalterno" responde pela "realidade" e que, não por acaso, é o "iluminador" (isto é, o responsável pelo "esclarecimento"). Que esse profissional, "inferior" aos atores e ao diretor, sobe numa escada, vê o ensaio "de cima" e, além disso, manipula a escada de madeira como se fosse uma guilhotina.
Com a guilhotina, passamos à outra peça também encenada no Centro Cultural São Paulo pelo grupo de Sérgio de Carvalho: é o "Ensaio para Danton", onde mais um texto clássico ("A Morte de Danton", de Georg Büchner) sofre uma leitura revolucionária e riquíssima.
O texto de Büchner, escrito por volta de 1830, narra o conflito entre Danton e Robespierre. Numa ótica burguesa, o que não quer dizer errada, está em jogo o conflito entre liberdade e terror, entre indivíduo e tirania.
A montagem em cartaz revoluciona esse conflito. Introduz, ademais desse debate moral, um outro, de corte brechtiano: o debate, se é que há debate, entre comer e passar fome. A Companhia do Latão -esse é o nome do grupo responsável pelas duas peças- inventa personagens proletários que subvertem o texto original, com grande efeito cômico e, digamos tudo, relevância política.
É o mesmo procedimento que estávamos vendo acima. Os pobres de "Danton", como o iluminador de "Ensaio sobre o Latão", irrompem em cena para desestabilizar o teatro convencional e para complicar a discussão.
O grande mérito de uma peça de teatro, para mim, é quando fica impossível resumi-la, quando sinto que perdi alguma coisa do jogo de idéias e de pontos de vista posto em cena. A Companhia do Latão faz isso.
Milita em favor da Razão. Com "R" maiúsculo mesmo, essa maiúscula anda fazendo falta.
Vai ficar parecendo, com tudo o que eu disse, que os espetáculos da Companhia do Latão são difíceis e cerebrais. Ao contrário: são engraçados, econômicos, cheios de criatividade e de talento. O compromisso do grupo, segundo o diretor Sérgio de Carvalho, é com a inteligibilidade.
Aqui podemos voltar ao tema da metalinguagem. Uma peça mostrando atores que ensaiam o "Hamlet" e discutem o que deve ser o teatro teria tudo para surgir como masturbação metalinguística. Não é o caso de "Ensaio sobre o Latão".
Pois a moda da metalinguagem, desde Pirandello, tem servido a preocupações bastante frívolas: mostrar que "tudo é ilusão", "questionar" a linguagem, mostrar que "não há nada a dizer" etc. Na falsa metalinguagem de "Ensaio sobre o Latão", o conteúdo é importantíssimo.
Essa peça, que mostra atores ensaiando "Hamlet", usa o texto de Shakespeare de forma extremamente engenhosa, de modo a nem percebermos direito o momento em que as palavras literais do clássico se misturam a Brecht ou ao cotidiano brasileiro.
Ora, essa foi exatamente a estratégia do príncipe da Dinamarca, que, no drama de Shakespeare, recorre a atores mambembes para saber se o rei Cláudio realmente assassinou seu pai. Shakespeare (ou Hamlet) fez "teatro dentro do teatro" não por interesse em diversões metalinguísticas, mas porque importava desvelar a realidade.
Isso é o que pretende a Companhia do Latão. A realidade brasileira vibra nesses exercícios, que é preciso ser muito burro para considerar "intelectuais".
Karl Marx era leitor de "Hamlet". No "Dezoito Brumário" compara a revolução, naquele momento em refluxo, à "velha toupeira" que, cegamente, escava seu caminho sob o sólido terreno burguês. A frase -"velha toupeira"- provém de Shakespeare: é assim que o príncipe Hamlet saúda o pai traído e assassinado.
E é como se a Companhia do Latão confiasse num fantasma -o de Brecht? O do Teatro? O da Razão? O de Marx?- para subverter a mesmice desesperançada, irracional, mercadológica, "fashionable" ou, na melhor das hipóteses, festiva do teatro no Brasil.
O porão do Centro Cultural São Paulo nunca esteve tão bem iluminado.


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