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MARCELO COELHO
Ronaldo
Ainda existem, no horário
trash de sábado à tarde, os
programas de TV que seguem o
velho modelo da "Rainha por um
Dia". Antigamente era no Silvio
Santos, e me disseram que agora é
com outro apresentador. O sistema, ao que eu saiba, continua o
mesmo: uma mulher paupérrima
é sorteada, providenciam-lhe
manto, cetro e coroa e, em seguida, ela recebe, coberta de lágrimas, todos os presentes com que
sonhou.
Nos programas de auditório
sempre se falou em "nossos patrocinadores", para evitar o termo
"anunciantes". Uma grande
quantidade de "patrocinadores"
é mobilizada para transformar
faveladas em princesas: de cabeleireiros a lojas de materiais de
construção, de butiques a clínicas
dentárias, o essencial, o urgente e
o supérfluo se combinam num espetáculo tropicalista de dispêndio
e de miséria; o conjunto lembra
um pouco as roupas do Chacrinha, que também deve ter promovido programas desse tipo.
Certo, isso é o que se passa com
mulheres desassistidas nos piores
canais. Mas eu estava lendo sobre
o noivado de Ronaldo e Daniella
Cicarelli, que pertencem ao outro
extremo da escala de riqueza e de
prestígio social, e a notícia é que o
casamento dos dois deverá ser totalmente "patrocinado" também.
Escrevi "casamento", mas a palavra está em desuso, pelo menos
nas revistas de fofocas. Prefere-se
falar em "boda", porque com menos letras sobra espaço para as fotos. O que significa uma, vá lá,
"boda patrocinada"?
É que os noivos não pagam nada: o vestido é cedido por um
grande costureiro para obter
prestígio, determinada fábrica de
bebidas providencia o champanhe, uma empresa aérea promove
a lua-de-mel, a joalheria faz publicidade com as alianças e com a
tiara também, como não. Você
também pode cobrar pelos direitos de transmissão exclusiva pela
TV, como num jogo de futebol.
Não digo que isso vá necessariamente acontecer com Daniella e
Ronaldo. Em todo caso, a hipótese de um "patrocínio total" é bastante assustadora. O grau básico
de liberdade individual, de capricho de consumidor, de sonho de
noiva, estaria comprometido.
Mas talvez essa liberdade já não
exista: as celebridades do mundo
da moda e dos esportes há muito
tempo já têm contratos, pelos
quais têm de ser fiéis a tais ou tais
marcas de roupa ou de cerveja.
De certa forma, estão fazendo
propaganda o tempo todo.
Outro dia, na Ilustrada, lembraram uma frase da Xuxa,
quando ainda estava grávida da
Sasha. "Pretendo preservar a minha filha da superexposição", declarou, "senão vira trabalho e não
acho justo". É isso mesmo: essa
gente parece estar trabalhando
sem parar, a serviço de alguma
empresa.
Daí, provavelmente, os casos
mais trágicos de famosos que se
embriagam, terminam presos etc.
Impossibilitados de "parar de trabalhar", isto é, de desfrutar não só
de privacidade mas de um consumo "desinteressado", eles tentam
fugir da fama, atacando o maior
e mais identificável "patrão" que
possuem: a própria imagem.
O que eu acho mais perturbador, entretanto, é a perspectiva de
um mundo em que tudo, absolutamente tudo, ganhasse um rótulo, uma etiqueta, uma legenda. Já
imaginou um bolo de noiva do
qual saísse um barbantinho,
prendendo o logotipo da doceira?
"Com a garantia de qualidade
Abelhão & Cia."
De novo pergunto se já não é
mais ou menos isso o que acontece. As celebridades recebem alegremente os produtos que deverão usar e não gastam nada com
isso. Suas personalidades radiosas fazem publicidade do produto. Já com o cidadão comum,
ocorre o inverso: imaginariamente o produto radioso é que faz um
pouco de publicidade para a sua
personalidade um tanto discreta.
Todo mundo usa roupas em que
a marca do fabricante aparece
com destaque. No carro -mas
acho que esse hábito já diminuiu
um pouco- também se pregam
adesivos com o nome desta ou daquela loja, e ninguém cobra: ao
contrário, paga-se por isso.
Legendas, rótulos e patrocínios
invadem tudo; o mais modesto e
obscuro espetáculo de teatro terá
forçosamente sua lista de patrocinadores -um restaurante vegetariano, um ponto de táxi, um
brechó na rua 13 de Maio. No cinema brasileiro, os patrocinadores são tantos que se confundem
com uma página da lista telefônica ou com a inumerável realidade. Prefeituras e governos trocam
a palavra "patrocínio" pela palavra "parceria", mas a comercialização, ou melhor, a publicitarização da realidade se fez total.
É assim que uma velha e bonita
frase de Emerson (1803-1882) vai
ficando quase incompreensível
nos dias de hoje. Uma pessoa pode possuir um terreno no campo,
dizia ele num ensaio, "mas quem
pode ser o dono da paisagem?".
Claro, Emerson falava isso sem
pensar nos prédios de apartamento, que já são uma violenta
privatização do espaço natural.
Agora, no menor canteiro da cidade, encontramos a placa de que
tal pizzaria ou salão de beleza
cuida do lugar.
Olho para minhas roupas: raras
são as que trazem marcas ostensivas. Sou dos que ainda zelam para não parecer um homem-sanduíche quando saem às ruas. Mas
estou pensando em mandar confeccionar camisetas com legenda
para mim também: talvez escreva, com letras luminosas, o nome
de "Marcelo Coelho". Vão pensar
que é alguma marca de primeira
qualidade.
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