São Paulo, quarta-feira, 15 de setembro de 2004

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MARCELO COELHO

Ronaldo

Ainda existem, no horário trash de sábado à tarde, os programas de TV que seguem o velho modelo da "Rainha por um Dia". Antigamente era no Silvio Santos, e me disseram que agora é com outro apresentador. O sistema, ao que eu saiba, continua o mesmo: uma mulher paupérrima é sorteada, providenciam-lhe manto, cetro e coroa e, em seguida, ela recebe, coberta de lágrimas, todos os presentes com que sonhou.
Nos programas de auditório sempre se falou em "nossos patrocinadores", para evitar o termo "anunciantes". Uma grande quantidade de "patrocinadores" é mobilizada para transformar faveladas em princesas: de cabeleireiros a lojas de materiais de construção, de butiques a clínicas dentárias, o essencial, o urgente e o supérfluo se combinam num espetáculo tropicalista de dispêndio e de miséria; o conjunto lembra um pouco as roupas do Chacrinha, que também deve ter promovido programas desse tipo.
Certo, isso é o que se passa com mulheres desassistidas nos piores canais. Mas eu estava lendo sobre o noivado de Ronaldo e Daniella Cicarelli, que pertencem ao outro extremo da escala de riqueza e de prestígio social, e a notícia é que o casamento dos dois deverá ser totalmente "patrocinado" também.
Escrevi "casamento", mas a palavra está em desuso, pelo menos nas revistas de fofocas. Prefere-se falar em "boda", porque com menos letras sobra espaço para as fotos. O que significa uma, vá lá, "boda patrocinada"?
É que os noivos não pagam nada: o vestido é cedido por um grande costureiro para obter prestígio, determinada fábrica de bebidas providencia o champanhe, uma empresa aérea promove a lua-de-mel, a joalheria faz publicidade com as alianças e com a tiara também, como não. Você também pode cobrar pelos direitos de transmissão exclusiva pela TV, como num jogo de futebol.
Não digo que isso vá necessariamente acontecer com Daniella e Ronaldo. Em todo caso, a hipótese de um "patrocínio total" é bastante assustadora. O grau básico de liberdade individual, de capricho de consumidor, de sonho de noiva, estaria comprometido. Mas talvez essa liberdade já não exista: as celebridades do mundo da moda e dos esportes há muito tempo já têm contratos, pelos quais têm de ser fiéis a tais ou tais marcas de roupa ou de cerveja. De certa forma, estão fazendo propaganda o tempo todo.
Outro dia, na Ilustrada, lembraram uma frase da Xuxa, quando ainda estava grávida da Sasha. "Pretendo preservar a minha filha da superexposição", declarou, "senão vira trabalho e não acho justo". É isso mesmo: essa gente parece estar trabalhando sem parar, a serviço de alguma empresa.
Daí, provavelmente, os casos mais trágicos de famosos que se embriagam, terminam presos etc. Impossibilitados de "parar de trabalhar", isto é, de desfrutar não só de privacidade mas de um consumo "desinteressado", eles tentam fugir da fama, atacando o maior e mais identificável "patrão" que possuem: a própria imagem.
O que eu acho mais perturbador, entretanto, é a perspectiva de um mundo em que tudo, absolutamente tudo, ganhasse um rótulo, uma etiqueta, uma legenda. Já imaginou um bolo de noiva do qual saísse um barbantinho, prendendo o logotipo da doceira? "Com a garantia de qualidade Abelhão & Cia."
De novo pergunto se já não é mais ou menos isso o que acontece. As celebridades recebem alegremente os produtos que deverão usar e não gastam nada com isso. Suas personalidades radiosas fazem publicidade do produto. Já com o cidadão comum, ocorre o inverso: imaginariamente o produto radioso é que faz um pouco de publicidade para a sua personalidade um tanto discreta. Todo mundo usa roupas em que a marca do fabricante aparece com destaque. No carro -mas acho que esse hábito já diminuiu um pouco- também se pregam adesivos com o nome desta ou daquela loja, e ninguém cobra: ao contrário, paga-se por isso.
Legendas, rótulos e patrocínios invadem tudo; o mais modesto e obscuro espetáculo de teatro terá forçosamente sua lista de patrocinadores -um restaurante vegetariano, um ponto de táxi, um brechó na rua 13 de Maio. No cinema brasileiro, os patrocinadores são tantos que se confundem com uma página da lista telefônica ou com a inumerável realidade. Prefeituras e governos trocam a palavra "patrocínio" pela palavra "parceria", mas a comercialização, ou melhor, a publicitarização da realidade se fez total.
É assim que uma velha e bonita frase de Emerson (1803-1882) vai ficando quase incompreensível nos dias de hoje. Uma pessoa pode possuir um terreno no campo, dizia ele num ensaio, "mas quem pode ser o dono da paisagem?". Claro, Emerson falava isso sem pensar nos prédios de apartamento, que já são uma violenta privatização do espaço natural. Agora, no menor canteiro da cidade, encontramos a placa de que tal pizzaria ou salão de beleza cuida do lugar.
Olho para minhas roupas: raras são as que trazem marcas ostensivas. Sou dos que ainda zelam para não parecer um homem-sanduíche quando saem às ruas. Mas estou pensando em mandar confeccionar camisetas com legenda para mim também: talvez escreva, com letras luminosas, o nome de "Marcelo Coelho". Vão pensar que é alguma marca de primeira qualidade.


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