São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2008

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Crítica

Livro luta contra auto-ajuda, mas resulta anódino

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Cordilheira" é o romance de Daniel Galera escrito para o projeto "Amores Expressos". Como não é possível deixar de saber, o tal projeto deu a alguns autores brasileiros uma "missão": "escrever uma história de amor ambientada em uma cidade ao redor do planeta".
Supondo desde logo que nenhum leitor da Ilustrada esteja em idade de acreditar na relevância literária da "idéia", é certo, porém, que ela não impossibilita que resulte daí alguma boa prosa, por conta exclusiva do talento do autor envolvido.
Em "Cordilheira", Anita é uma jovem escritora, que, a despeito do sucesso de seu primeiro livro, já não se interessa por literatura e apenas cuida do desejo inadiável de gerar um filho. Movida pela idéia fixa, rompe com o namorado reticente em se tornar pai e acaba indo meio sem saber por que para Buenos Aires, com passagem e estada pagas pela editora que lança lá o seu livro.
Após vários passeios solitários por pontos turísticos da cidade -será este um lugar comum incontornável da "missão" recebida?-, Anita é abordada por certo "Holden" (Salinger implícito, claro). Tratava-se de um fã que chamara a sua atenção já no dia do lançamento do livro.
Aos poucos, o moço revela ser o líder de uma seita de autores, cujos membros se dedicavam a viver literalmente a história das personagens dos livros que escreviam. No momento do desfecho dessas aventuras de imitação havia até um ritual: os autores faziam um corte no polegar, deixavam pingar sangue nas páginas do livro que imitavam e, enfim, ateavam-lhe fogo ao mesmo tempo em que se lançavam ao seu "grand finale".
Nesse ponto, o leitor tem direito de imaginar que os portenhos criados por Galera estão mais para jogadores de RPG que para escritores.
E Anita, de fato, os vê com ironia e distância. O que quer, já sabemos, é um filho.
Tolera as literatices pomposas do bando na esperança de que Holden faça a coisa certa e a engravide. Do enredo é o que basta saber, se já estiver claro que o livro encena o confronto entre duas posições aparentemente extremas. Uma, que renuncia de bom grado à literatura em favor da procriação e da vida amorosa familiar; outra, que não deseja fazer da vida senão o suporte real da literatura.
No desenrolar do confronto, Galera evidencia, porém, que a obsessão pela maternidade possui um componente tão ficcional e bizarro quanto o que movia os literatos. O sonho da gestação se revela como uma forma de pânico, ou ao menos de incapacidade de aceitar o tempo próprio do vivido. Será preciso acentuar o quanto tudo isso tem de matéria edificante ou de potencial de auto-ajuda?
Galera nem quer que seja assim. Pode-se dizer que luta contra isso ao longo do romance, adotando um tom que cola às personagens para logo ganhar distância delas.
O resultado é um texto ao mesmo tempo fluente, anódino e submetido a previsíveis "filosofias de vida". Anita, a despeito da vontade do autor, acaba também ela por encarnar a narrativa de um "nós" sentencioso e mezzo-psicanalizante.


ALCIR PÉCORA é professor da Unicamp

CORDILHEIRA
Autor: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 37 (176 págs.)
Avaliação: regular
Lançamento: seg., 27/7, às 19h, na Mercearia São Pedro (r. Rodésia, 34, tel. 3815-7200)


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