São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Anunciação profana


Novo livro de Horácio Costa traz poemas que oscilam entre memória alucinada e crítica da história

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

NARRATIVIDADE E reflexão sobre a história são duas tônicas pouco freqüentes na poesia brasileira contemporânea. São dominantes, porém, na obra de Horácio Costa -que, por conta disso, vem se constituindo numa voz singular da poesia atual.
O lançamento de "Ravenalas", que inclui vários poemas inéditos e alguns publicados recentemente em "Paulistanas/Homoeróticas" (dois pequenos volumes reunidos numa caixa pela Lumme), reitera essa singularidade, mas também aprofunda um outro aspecto de sua poética: o registro alucinado de vivências pessoais, que muitas vezes conferem caráter hermético a versos cheios de referências cifradas, personagens extraídos de episódios históricos pouco conhecidos ou simplesmente pessoas e situações que impregnaram a memória do poeta.
Vem daí a alternância, que percorre o livro, entre poemas que trazem um viés crítico e aqueles que acumulam sentidos no limite da inteligibilidade. Num autor complexo como Horácio Costa, no entanto, não há mímese direta da realidade (ou seja, ele não representa coisas e seres, mas os reapresenta numa nova ordem).
E aquilo que é opaco se oferece em enigma, por força de uma linguagem que vai passando quase instantaneamente do elegíaco para o escatológico, do erudito para o chulo.
Poeta antimetafórico por excelência, em "A Voz do Brasil" ele descreve o diálogo com um aeromoço no qual descobre que a voz feminina que anuncia os vôos no aeroporto de Congonhas é, na verdade, de um rapaz de origem japonesa.
A cena, aparentemente sem significado maior, usa sugestões homoeróticas para desmontar estereótipos de brasilidade ("E a Voz do Brasil, masculina/ Mas não viril,/ Quem diria, é mesmo/ De gueisha").
Autor de poesias que dialogam com a tradição latino-americana do poema longo (presente nos versos caudalosos de "Poema Nímio"), Horácio Costa vai construindo uma mitologia particular, em que Caravaggio e Rimbaud rimam com Carmen Miranda e Rita Hayworth.
Eles encarnam (em diferentes poemas) o corpo dilacerado, febril, e o corpo em transe: de todo modo, a matéria orgânica prevalece sobre os discursos abstratos.
As próprias categorias estéticas derretem: o Sublime -conceito atribuído a Longino, na Antigüidade, e que expressa o incomensurável, "o fogo sacro, o ímã sacrossanto, o "quid" da poesia"- é aqui também o nome do papel higiênico que remete à cena íntima em que o abjeto sublima as aberrações da civilização.
Dentro de um registro mais afinado com a tradição lírica brasileira, surge "Conversação com Tápies", um políptico no qual o artista espanhol (que usa detritos e trapos para compor suas telas) serve de fio condutor para Horácio Costa traçar seu itinerário por uma São Paulo. Onipresente em sua poética, a cidade que ali surge já não é a capital modernista, mas a "anunciação profana" das ruínas da modernidade.

RAVENALAS
Autor: Horácio Costa
Editora: Demônio Negro
Quanto: R$ 40 (148 págs.)
Avaliação: bom



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