São Paulo, sábado, 15 de dezembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O escritor encurralado

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Há dois meses, num artigo publicado na "The New Yorker" e incluído como prefácio na recém-lançada edição americana de "Summer em Baden-Baden" (verão em Baden-Baden), do russo Leonid Tsypkin (1926-1982), Susan Sontag anunciava o que, na sua opinião, era a última obra-prima esquecida da literatura do século 20, um romance que havia sobrevivido por milagre.
O milagre vem por conta da vida do autor. Leonid Tsypkin nasceu em Minsk, capital da atual Belarus, entre as duas guerras, numa família de judeus. Não poderia ter calculado pior lugar ou momento.
O pai, que era médico, foi preso pelo terror stalinista e libertado depois de tentar se matar. Com a invasão alemã, parte da família foi assassinada no gueto de Minsk. Tsypkin e os pais conseguiram escapar graças a um ex-paciente que os escondeu num caminhão de picles para fora da cidade.
Ao se formar em medicina, casado e com um filho pequeno, o futuro autor teve de penar sob os efeitos do anti-semitismo até conseguir por fim, em 1957, um emprego de patologista num instituto de Moscou.
Embora sempre tenha se interessado por literatura, só depois dos 40 anos é que começou a escrever textos que nunca publicou, em parte porque nada tinham a ver com a literatura oficial e também por temer retaliações se os lançasse por meios clandestinos ou independentes.
Em 1977, quando o filho e a cunhada decidem emigrar para os EUA, a situação de Tsypkin, que já não era fácil, vira um inferno. Os vistos são concedidos, mas assim que a informação chega aos seus superiores no instituto, ele é rebaixado e afastado das pesquisas.
É quando começa a escrever "Summer em Baden-Baden", fruto de uma pesquisa minuciosa e de uma paixão literária: o livro trata em grande parte da viagem que Dostoiévski e sua segunda mulher, Anna Grigórievna, fazem a Baden-Baden, em 1867, acossados pelas dívidas e pelas humilhações, em busca da sorte no jogo.
Em 1979, sem ver outra saída, Tsypkin, a mulher e a mãe pedem vistos de emigração. Esperam dois anos para receber a resposta negativa. Tentam uma segunda vez e recebem outro não, agora definitivo.
No início de 1982, ele é demitido do instituto. Na mesma época, o filho consegue publicar a primeira parte de "Summer em Baden-Baden" numa revista de imigrantes russos nos EUA. Tsypkin morre uma semana depois, de ataque cardíaco, sem nunca ter publicado nada em seu país além de artigos e traduções em revistas científicas.
"Summer em Baden-Baden" é composto de longos parágrafos formados cada um por uma frase que se desdobra, por meio de vírgulas e travessões, em várias orações embutidas. Tsypkin é desses escritores que crêem não na linguagem como uma lente transparente que faz ver o mundo mas, ao contrário, na linguagem como uma rede que, jogada sobre o mundo invisível, só o torna visível, em seus contornos, pois também se deixa ver.
O romance intercala dois tempos e duas viagens: a que o próprio Tsypkin faz de Moscou a Leningrado (atual São Petersburgo), no rastro de Dostoiévski, e a que o autor de "Crime e Castigo" faz com a mulher pela Alemanha, tentando a sorte, para dar continuidade a sua carreira literária.
Assim como Dostoiévski, na época ainda à espera do reconhecimento literário, se humilha diante de escritores consagrados como Turguêniev e precisa escrever às pressas para pagar as contas e não cair nas armadilhas dos contratos draconianos dos editores, Tsypkin depende de um exercício diário de autodeterminação para não desanimar quando tudo em volta o impede de ver um sentido no seu projeto literário. Não é à toa que a glória de Dostoiévski só venha nas últimas páginas do livro, às vésperas de sua morte.
A Tsypkin nunca foi permitido sair da União Soviética. Escrever é o que lhe resta. Muito das informações factuais do romance vem do diário da mulher de Dostoiévski, a que Tsypkin se agarra como se só lhe restassem os detalhes, para tentar tirar daí, do que é ínfimo, interior e íntimo, a exterioridade e a vastidão de um mundo inteiro imaginado. A literatura é o seu visto de emigração. "Summer em Baden-Baden" é o romance de um escritor encurralado.


Summer in Baden-Baden
Leto V Badene
    
Autor: Leonid Tsypkin
Tradução para o inglês: Roger e Angela Keys
Editora: New Directions
Quanto: US$ 23,95 (170 págs.) Onde encontrar: www.amazon.com




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