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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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NELSON ASCHER

Mais respeito com os jihadistas!

As guerras, observou o satirista vienense Karl Kraus, começam porque "os diplomatas mentem para os jornalistas e depois levam a sério o que lêem nos jornais". Feita no final da Primeira Guerra Mundial, um conflito cujas origens explicava bem, essa constatação não se aplica universalmente. A Segunda Guerra Mundial decorreu menos de imbróglios diplomáticos que do projeto alemão de conquistar a Eurásia, enquanto a Guerra Fria resultou do desejo soviético de sujeitar o resto do planeta a seu sistema.
Para muitos, a conflagração que se desenrola agora no mundo inteiro nem sequer existe. Caso exista, porém, tampouco tem a ver com o fracasso de negociações de bastidores. Seus iniciadores, os fundamentalistas islâmicos, nunca esconderam suas metas: impor a "shariá" (a lei islâmica) aos países muçulmanos e retomar, em seguida, a expansão imperial iniciada 14 séculos atrás pelo profeta. Apesar de reveses temporários, como o contra-ataque das Cruzadas, as invasões mongólicas ou a reconquista da península Ibérica, tal processo continuou com a invasão otomana da Anatólia, dos Bálcãs e de parte da Europa Central. Estas duas últimas regiões não se libertaram totalmente antes do século 20.
O ressurgimento contemporâneo da "jihad" é difícil de datar, se bem que, de acordo com vários especialistas, principie ou com a fundação, em 1928, no Egito, da Fraternidade Muçulmana, ou com a Revolução Iraniana, de 1979. Seja como for, a casa real saudita tem, após 1973, desempenhado nela um papel discretamente central. A Arábia Saudita, um país onde construir igrejas, sinagogas, templos budistas etc. é proibido e cujas cidades santas, Meca e Medina, são fechadas aos "infiéis", não somente ergue há décadas mesquitas no mundo inteiro como, ademais, enviando-lhes pregadores escolhidos a dedo, transformou-as em centros de difusão de sua vertente radical do islamismo sunita, o wahhabbismo.
Assim, os fluxos de caixa são conhecidos; os sermões anti-semitas, antiamericanos e antiocidentais proferidos em mesquitas européias, africanas e asiáticas são regularmente gravados, comercializados e podem ser achados em tradução na internet; se o nome de quem perpetrou, por exemplo, os atentados contra a ONU e a Cruz Vermelha em Bagdá nem sempre é descoberto, sabe-se que seus autores eram fanáticos motivados por zelo religioso, racismo e xenofobia (no caso do assassinato de Sérgio Vieira de Melo, convém lembrar que o brasileiro participou decisivamente de um evento que despertou a ira explícita de Osama bin Laden, a saber, a independência do Timor Leste cristão, ocupado pela Indonésia muçulmana); sobretudo, os jihadistas proclamam aos quatro ventos seus objetivos e dançam nas ruas quando julgam que os estão alcançando. (Sim: muitos palestinos comemoraram abertamente os massacres nos EUA, e o boato que circulou no Brasil acusando de falsa a filmagem foi desmentido em questão de dias.)
Por que, então, Susan Sontag, Noam Chomsky, Gore Vidal, Jacques Derrida, Eric Hobsbawm, Umberto Eco, Juergen Habermas, Guenther Grass e mais uma legião de pessoas inteligentes insistem em discorrer sobre o presente como se a jihad internacional, a campanha imperialista do islamismo político, fosse um problema menor ou uma ilusão de ótica?
A explicação talvez se encontre numa combinação de arrogância com etnocentrismo e reflexo defensivo. Embora seja frustrante desenvolver um modelo que pretende dar conta do real só para vê-lo demolido por fatos inesperados, alguém como Hobsbawm não tem mais idade para começar a fazer análise. Chomsky, Vidal e Sontag, como muitos de seus conterrâneos, não passando de patriotas ao avesso, crêem firmemente que são apenas as ações norte-americanas que pesam sobre o destino da humanidade. Quanto a Derrida, Eco, Habermas ou Grass, vivendo num universo pós-moderno, num continente pós-histórico, num ambiente pós-passional, eles se considerariam racistas caso julgassem que os membros de outras civilizações não pensam, sentem e agem exatamente como seus colegas de cafeteria em Paris, Milão, Frankfurt. E, se estes concordam que, por um lado, a cobiça, a ganância ou a usura são a raiz de todos os males e, por outro, que a religião e as paixões em geral (consideradas irracionais) não contam mais, quem ousará discordar?
Mas o que todos compartilham se resume, afinal, num desprezo intelectual pelos jihadistas (Hobsbawm os chamaria de "rebeldes primitivos") e nada o patenteia melhor do que sua recusa em ouvi-los. Tanto faz o que os militantes digam, os intelectuais ocidentais jamais resistem à tentação de vertê-lo em seus próprios termos, de modo a explicar ao público e mesmo aos militantes o que estes queriam de fato dizer. Se Bin Laden declara guerra aos "judeus, cruzados e cristãos", suas palavras, como se o líder da Al Qaeda fosse um iletrado, precisam ser logo traduzidas por "sionistas, neo-conservadores e capitalistas". Quando um imame assevera que homossexuais, adúlteras, homens sem barba e mulheres sem véu devem ser apedrejados, a única interpretação possível de seu sermão é a de que se trata de um ataque metafórico-alegórico a George Bush e a Hollywood. E a frase já clássica que o mujahedin afegão Maulana Inyadullah disse a um repórter inglês, "Os americanos gostam de Pepsi-Cola, mas nós gostamos da morte", significa realmente "Proletários do mundo inteiro, uni-vos!".
Uma adaptação atualizada do epigrama de Kraus sugeriria que hoje algumas das melhores cabeças dizem autisticamente e em nome dos militantes islâmicos aquilo em que elas, e apenas elas, querem acreditar. Se eu fosse um jihadista, isso me ofenderia profundamente.


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