|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Mais respeito com os jihadistas!
As guerras, observou o satirista vienense Karl Kraus,
começam porque "os diplomatas
mentem para os jornalistas e depois levam a sério o que lêem nos
jornais". Feita no final da Primeira Guerra Mundial, um conflito
cujas origens explicava bem, essa
constatação não se aplica universalmente. A Segunda Guerra
Mundial decorreu menos de imbróglios diplomáticos que do projeto alemão de conquistar a Eurásia, enquanto a Guerra Fria resultou do desejo soviético de sujeitar
o resto do planeta a seu sistema.
Para muitos, a conflagração
que se desenrola agora no mundo
inteiro nem sequer existe. Caso
exista, porém, tampouco tem a
ver com o fracasso de negociações
de bastidores. Seus iniciadores, os
fundamentalistas islâmicos, nunca esconderam suas metas: impor
a "shariá" (a lei islâmica) aos países muçulmanos e retomar, em
seguida, a expansão imperial iniciada 14 séculos atrás pelo profeta. Apesar de reveses temporários,
como o contra-ataque das Cruzadas, as invasões mongólicas ou a
reconquista da península Ibérica,
tal processo continuou com a invasão otomana da Anatólia, dos
Bálcãs e de parte da Europa Central. Estas duas últimas regiões
não se libertaram totalmente antes do século 20.
O ressurgimento contemporâneo da "jihad" é difícil de datar,
se bem que, de acordo com vários
especialistas, principie ou com a
fundação, em 1928, no Egito, da
Fraternidade Muçulmana, ou
com a Revolução Iraniana, de
1979. Seja como for, a casa real
saudita tem, após 1973, desempenhado nela um papel discretamente central. A Arábia Saudita,
um país onde construir igrejas, sinagogas, templos budistas etc. é
proibido e cujas cidades santas,
Meca e Medina, são fechadas aos
"infiéis", não somente ergue há
décadas mesquitas no mundo inteiro como, ademais, enviando-lhes pregadores escolhidos a dedo,
transformou-as em centros de difusão de sua vertente radical do
islamismo sunita, o wahhabbismo.
Assim, os fluxos de caixa são conhecidos; os sermões anti-semitas, antiamericanos e antiocidentais proferidos em mesquitas européias, africanas e asiáticas são
regularmente gravados, comercializados e podem ser achados
em tradução na internet; se o nome de quem perpetrou, por exemplo, os atentados contra a ONU e
a Cruz Vermelha em Bagdá nem
sempre é descoberto, sabe-se que
seus autores eram fanáticos motivados por zelo religioso, racismo e
xenofobia (no caso do assassinato
de Sérgio Vieira de Melo, convém
lembrar que o brasileiro participou decisivamente de um evento
que despertou a ira explícita de
Osama bin Laden, a saber, a independência do Timor Leste cristão, ocupado pela Indonésia muçulmana); sobretudo, os jihadistas proclamam aos quatro ventos
seus objetivos e dançam nas ruas
quando julgam que os estão alcançando. (Sim: muitos palestinos comemoraram abertamente
os massacres nos EUA, e o boato
que circulou no Brasil acusando
de falsa a filmagem foi desmentido em questão de dias.)
Por que, então, Susan Sontag,
Noam Chomsky, Gore Vidal, Jacques Derrida, Eric Hobsbawm,
Umberto Eco, Juergen Habermas,
Guenther Grass e mais uma legião de pessoas inteligentes insistem em discorrer sobre o presente
como se a jihad internacional, a
campanha imperialista do islamismo político, fosse um problema menor ou uma ilusão de ótica?
A explicação talvez se encontre
numa combinação de arrogância
com etnocentrismo e reflexo defensivo. Embora seja frustrante
desenvolver um modelo que pretende dar conta do real só para
vê-lo demolido por fatos inesperados, alguém como Hobsbawm
não tem mais idade para começar
a fazer análise. Chomsky, Vidal e
Sontag, como muitos de seus conterrâneos, não passando de patriotas ao avesso, crêem firmemente que são apenas as ações
norte-americanas que pesam sobre o destino da humanidade.
Quanto a Derrida, Eco, Habermas ou Grass, vivendo num universo pós-moderno, num continente pós-histórico, num ambiente pós-passional, eles se considerariam racistas caso julgassem
que os membros de outras civilizações não pensam, sentem e
agem exatamente como seus colegas de cafeteria em Paris, Milão,
Frankfurt. E, se estes concordam
que, por um lado, a cobiça, a ganância ou a usura são a raiz de
todos os males e, por outro, que a
religião e as paixões em geral
(consideradas irracionais) não
contam mais, quem ousará discordar?
Mas o que todos compartilham
se resume, afinal, num desprezo
intelectual pelos jihadistas (Hobsbawm os chamaria de "rebeldes
primitivos") e nada o patenteia
melhor do que sua recusa em ouvi-los. Tanto faz o que os militantes digam, os intelectuais ocidentais jamais resistem à tentação de
vertê-lo em seus próprios termos,
de modo a explicar ao público e
mesmo aos militantes o que estes
queriam de fato dizer. Se Bin Laden declara guerra aos "judeus,
cruzados e cristãos", suas palavras, como se o líder da Al Qaeda
fosse um iletrado, precisam ser logo traduzidas por "sionistas, neo-conservadores e capitalistas".
Quando um imame assevera que
homossexuais, adúlteras, homens
sem barba e mulheres sem véu devem ser apedrejados, a única interpretação possível de seu sermão é a de que se trata de um
ataque metafórico-alegórico a
George Bush e a Hollywood. E a
frase já clássica que o mujahedin
afegão Maulana Inyadullah disse
a um repórter inglês, "Os americanos gostam de Pepsi-Cola, mas
nós gostamos da morte", significa
realmente "Proletários do mundo
inteiro, uni-vos!".
Uma adaptação atualizada do
epigrama de Kraus sugeriria que
hoje algumas das melhores cabeças dizem autisticamente e em
nome dos militantes islâmicos
aquilo em que elas, e apenas elas,
querem acreditar. Se eu fosse um
jihadista, isso me ofenderia profundamente.
Texto Anterior: Cinema/crítica: Animação explora lenda nativa sem distorção Próximo Texto: Artes visuais - Exposição: Água transporta jovens à galeria londrina Índice
|