São Paulo, quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

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Grupo persegue, pesquisa e revela o Brasil de dentro

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Sempre que o Brasil resolve querer se conhecer melhor, acaba voltando os olhos para seu próprio interior. Foi o que fez o modernista Mário de Andrade, há pouco menos de um século, e é o que tem voltado a fazer nestes primeiros anos do século 21 o grupo paulistano A Barca -sob inspiração direta de Mário, diga-se.
O atual projeto de percorrer o Brasil oferecendo e colhendo sabedorias é amplificação do trabalho que o grupo já exercia de forma mais restrita, e que rendeu como primeiro produto concreto o excepcional álbum "Turista Aprendiz" (2000). Ali, A Barca reinterpretava cantigas e ritos recolhidos por Mário de Andrade no Brasil interior, bem como cheganças, jongos e até o samba paulista de Geraldo Filme.
O trabalho tomou prosseguimento e até se radicalizou no CD "Baião de Princesas" (2002), gravado em esquema grupal com o núcleo maranhense do terreiro de candomblé Casa Fanti Ashanti. Se A Barca já pesquisava e perseguia a diversidade musical do Brasil escondido, agora investia também no sincretismo religioso, na tolerância entre os credos.
Não bastasse, é febril o ritmo das atividades paralelas dos integrantes desse misto de circo, Caravana Holiday, trupe de commedia dell'arte, filme d'Os Trapalhões etc. etc.
Além de trabalhos solo de vários deles, os d'A Barca se espalham também por grupos de música e/ ou teatro, como Barbatuques, Cia. do Latão, Vésper Vocal. Lincoln Antonio produziu, também, o CD "Cavalo de Praia - Sambas da Ilha" (2001), uma compilação de autores santistas de samba.
A música d'A Barca, sob essas referências, resulta formalista e exuberante, mas muito distante do que se costuma entender sobre cultura contemporânea, urbana -é o outro lado do espelho que compreende nossa cultura jovem como um misto de eletrônica, hip hop, rock pesado e MPB.
Sendo assim, A Barca se atira em terrenos que se costuma classificar como folclóricos -fica perto de ser compreendida como algo estilizado, fantasiado de bumba-meu-boi maranhense, maracatu pernambucano ou carnaval carioca. Afasta-se, assim, da nossa compreensão cotidiana.
Mas esse é um dos disfarces defensivos que costumam vestir o naco do Brasil que se espreme de medo de se autoconhecer. Um desprezo do Brasil por si próprio se oculta, desde ao menos os tempos de Mário, sob a fantasia espalhafatosa de que tais músicas e danças interioranas são distantes, perdidas no tempo e no espaço de um Brasil que é muito mais moderno, muito menos arcaico.
Pois está aí o serviço prestado pel'A Barca, agora sob patrocínio. Expondo a cultura do grande Brasil interno, demonstra e confessa que não somos só litoral, que não somos apenas superfície e superficialidade. Vazando as tripas saudáveis do Brasil, permite o caminho de volta que legitima junto com cocos e rojões o hip hop, o tecno, as músicas todas do Brasil que pensa que não é Brasil.


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