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Pai das HQs alternativas fala sobre sua história, retratada no livro "Minha Vida", e seu atual projeto, uma versão ilustrada do Gênesis
As aventuras de R. Crumb em pessoa
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL
A aversão do cartunista norte-americano Robert Crumb, pai
dos quadrinhos underground e
celebridade mundial desde a década de 70, ao contato com a imprensa cresceu na mesma proporção que sua fama.
"Ser importunado por malditos
jornalistas é um pesadelo. Desenvolvi um tremendo desprezo por
jornalistas e gente de mídia. Acho
que sou ingrato, né?", analisa ele
em um dos textos autobiográficos
que, somados a inúmeras histórias em quadrinhos centradas em
si mesmo, compõem o recém-lançado álbum "Minha Vida".
Mas toda essa conversa é apenas
uma das faces -a exagerada e
bravateira- do personagem
complexo que é Crumb, 62. Mesmo com sua editora avisando que
o artista não daria entrevistas,
quando ele finalmente atende ao
telefonema da Folha, após sua
mulher, Alice, fazer a gentileza de
resgatá-lo de seu refúgio nas
montanhas francesas, o homem
que responde às perguntas é um
sujeito calmo, risonho e que fala
muito sobre qualquer coisa.
Na conversa entram em pauta
sua vida, seu projeto atual (uma
versão ilustrada do Gênesis), os
recentes distúrbios sociais franceses e seu apreço pela música instrumental de Pixinguinha.
Folha - Sua mulher me disse que o
senhor estava isolado numa cabana, preparando seu próximo livro.
Esse é seu método de trabalho?
Robert Crumb - Não costumava
ser necessário me isolar, mas agora é, porque sou muito popular,
tem muita gente atrás de mim o
tempo todo. Então, se eu quiser
produzir bastante e me concentrar sem interrupções, é o que eu
tenho que fazer.
Folha - E quando foi tomada a decisão de se esconder?
Crumb - Há cerca de seis meses.
Um ano e meio atrás eu aceitei fazer um trabalho de grandes proporções, 200 páginas. Assinei
contrato com a editora, disse que
entregaria a obra em uns dois ou
três anos, eles começaram a me
pagar, mas eu simplesmente não
conseguia começar a produzir
por causa dessa loucura de gente
me procurando a toda hora. Então Aline teve essa idéia de me isolar numa cabana para que eu pudesse produzir, e funcionou.
Folha - E sobre o que é seu próximo trabalho?
Crumb - Estou fazendo uma versão ilustrada do Gênesis.
Folha - Comprando briga com os
religiosos?
Crumb - Estou andando em uma
linha muito estreita. Não estou fazendo piadas sobre o livro, mas,
ao mesmo tempo, não acredito
que é a palavra de Deus, então não
tenho reverência por ele. Sigo
uma linha entre essas duas posições, o que é difícil, porque me
sinto tentado a fazer piadas.
Folha - O senhor manteve o texto
original?
Crumb - Cada palavra. Estou
usando basicamente a versão judaica, a Torá, que é muito próxima da versão cristã, mas um pouco mais precisa, porque vários sábios judeus estudaram a versão
mais antiga possível, escrita em
hebraico, tentando encontrar o
significado real das palavras.
Folha - É um livro aberto a interpretações?
Crumb - Exato. E minha versão é
bem direta, até agora. Ainda que
haja alguma nudez nela, não fiz
nada muito chocante. Adão e Eva
não usavam roupas, então os desenhei andando nus, mas não os
mostrei transando ou algo do tipo. O que vai surpreender as pessoas, e me surpreendeu quando
eu li, é a quantidade de coisas estranhas que estão no texto e que
eu vou ilustrar detalhadamente.
Folha - O senhor teme algum tipo
de protesto causado pela obra?
Crumb - É claro que algumas
pessoas vão criticar, mas é um tipo de gente a que você nunca consegue agradar. Não ligo para elas.
Ainda não tenho certeza se, em
algum ponto, vou desenhar alguma cena que torne o livro inapropriado para menores. Porque há
algumas passagens que eu não defini como mostrar -por exemplo, como quando Onan decide
não ejacular dentro de sua esposa
e derrama sua semente no chão.
Folha - O senhor acha que "Minha
Vida" decifra Robert Crumb?
Crumb - Não sei se os leitores vão
entender quem eu sou, mas, no
meu trabalho, sou bastante aberto
sobre mim mesmo. Não fiz segredo de nada, todas as minhas obsessões estão lá. Sou muito mais
sincero sobre o que sinto nos desenhos do que na vida real.
Folha - Em determinado momento do livro o senhor diz que qualquer um pode ser um cartunista.
Sua profissão não requer talento?
Crumb -A idéia que eu tentei
passar é a de que as pessoas não
deveriam desistir de serem cartunistas por acharem que não têm
um talento inato. A quantidade de
entusiasmo que você tem pelo
trabalho e a quantidade de esforço que coloca nele são o que fazem funcionar. Sirvo de exemplo:
meu irmão Charles me forçava a
desenhar muito quando criança, e
foi isso que me fez criar histórias e
pegar o gosto pela coisa.
Folha - O senhor se representa em
seus personagens?
Crumb - Sim, todos são partes de
mim. As pessoas me perguntam
por que não desenhei cartuns sobre Nixon ou Reagan, ou Bush
agora, e eu respondo que a única
coisa sobre a qual consigo falar é
sobre mim mesmo.
Folha - Mas agora o senhor está
ilustrando o Gênesis. O que isso
tem de representação pessoal?
Crumb - Talvez eu tenha me cansado de falar sobre mim mesmo.
Folha - Então há esperança de
vermos quadrinhos sobre política?
Crumb - Não. Eu sou tão completamente alienado e desiludido
com a política atualmente que
não conseguiria fazer quadrinhos
sobre políticos ou coisas assim.
Folha - O senhor se mudou para a
França cansado da vida e da política dominante nos EUA. Mas a Europa também teve recentemente a
onda de protestos de imigrantes
pobres. A situação não parece estar
muito boa no continente.
Crumb - Em geral, essa nova geração de imigrantes islâmicos tem
tido muita dificuldade em se
adaptar à cultura francesa. E a
França não acredita que deva mudar sua cultura para abarcar os
valores islâmicos, pois não acredita nos valores dessa cultura. No
fim das contas, acho que os jovens
vão se adaptar aos valores franceses, que são muito melhores, mais
civilizados e democráticos do que
os do Marrocos ou da Argélia, por
exemplo. Quando minha filha,
Sophie, tinha 12 anos, convivia
com garotos muçulmanos na escola, e eles costumavam recorrer à
violência para resolver conflitos
muito mais do que os garotos
franceses. Isso é porque há muita
violência na cultura deles, são notórios aqui os casos de garotas
muçulmanas que apanham de
seus pais, de seus irmãos, por ousarem sair com garotos franceses.
Mas os garotos árabes se sentem
livres para saírem com garotas
francesas. É um grande choque de
culturas, mas eles vão se adaptar,
vão aprender a viver em uma sociedade que é mais evoluída em
termos educacionais.
Folha - Mas é com esse tipo de discurso que o presidente Bush justifica sua luta contra o "império do
mal", os "inimigos da democracia".
O senhor não teme se aproximar
tanto dele, ideologicamente?
Crumb - Bom, eles podem apontar esses detalhes culturais, que
são verdadeiros, em parte, mas isso não é razão para uma invasão
militar de outro país. Deixe que
eles resolvam sua cultura como
quiserem. Desde que não interfiram com a cultura dos outros, não
devemos interferir com a deles.
Folha - Em "Minha Vida" o senhor
fala sobre seu gosto peculiar por
música do começo do século passado. Ainda continua assim?
Crumb - Tenho ouvido muita
música antiga. E descobri discos
brasileiros antigos que são fabulosos, maravilhosos, das décadas de
20 e 30. Ótima música, alguns
cantores com bandas, algumas
bandas com sopros, outras só
com cordas. E tem esse excelente
flautista negro, Pixinguinha, que é
maravilhoso. Me interessei muito
pelos discos, mas é difícil achar
LPs brasileiros por aqui.
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