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Crítica/cinema/"Cassino Royale"
Na brutal era Jack Bauer, Bond revive
AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Sim, com Daniel Craig e
contra todas as apostas,
007 voltou. "Cassino Royale" não é o melhor nem sequer um dos melhores filmes
da série. Mas é interessante o
bastante para garantir a ressurreição de James Bond na era
brutal de Jack Bauer ("24 Horas"). Com o fim da Guerra
Fria, Bond parecia marcado para morrer. Pierce Brosnan veio
resgatá-lo. Atlético e carismático, insuflou vida a um personagem agônico, estabelecendo
novos recordes de bilheteria.
Mas o ponteiro continuou a
correr. Tentaram compensá-lo
com produções maiores, aposta
ilimitada em efeitos especiais e
roteiros apocalípticos desprovidos de qualquer sintonia com
o universo literário de Ian Fleming. Bond já fora antipático,
confuso e até ridículo.
A solução, como sempre, foi
voltar as raízes. "Cassino Royale" é a primeira adaptação a sério para cinema do romance de
estréia do espião britânico criado por Ian Fleming em 1953. A
primeira versão audiovisual foi
ao ar ao vivo em 1954 pela rede
de TV americana CBS, num especial de uma hora que trazia
Barry Nelson como um americanizado "Jimmy Bond" e Peter Lorre como o vilão Le Chiffre. A segunda adaptação, paródica, mobilizou em 1967 uma
dúzia de diretores e roteiristas
e escalou uma cascata de intérpretes para Bond, de Peter Sellers e David Niven a Woody
Allen. Era um total escracho.
No batismo em livro, Bond
enfrenta desafios muito mais
prosaicos do que derrotar supervilões ou salvar o mundo. É
jogando baralho, e não desarmando bombas nucleares, que
o conflito essencial se resolve.
A contenção dramática do romance contamina saudavelmente o novo filme, ainda que o
enredo original seja apenas
marginalmente seguido.
Substituindo o cinqüentão
Brosnan, Craig remete pela primeira vez em mais de 30 anos à
crueza e à masculinidade de
Sean Connery, o primeiro e definitivo intérprete de Bond.
Craig é loiro, e seu rosto retangular é quase feio. Mais musculoso do que alto, tem porte antes de estivador do que de oficial britânico. Bom ator, aposta
no minimalismo.
Dimensão carnal
Nenhum Bond apanhou tanto quanto o de Craig. Nunca nas
telas 007 dependeu tanto dos
próprios punhos. Não há nenhum Q com seus "gadgets" para socorrê-lo. A exigência física
do personagem parece uma
reação clara às patacoadas virtuais dos filmes mais recentes.
A recuperação dessa dimensão carnal de 007 é muito mais
bem resolvida do que a psicológica. Desabafos existenciais,
ternos olhares e juras de amor
casam mal com qualquer Bond
se dissociados de certo ceticismo, quando não de alguma ironia. O idílico romance com a
provedora de fundos do MI-6,
Vesper (Eva Green), é uma das
fragilidades do roteiro.
Outro problema é Le Chiffre.
A escolha do ator Mads Mikkelsen para o papel do vilão deve
muito à semelhança física que
ele guarda com o primeiro Le
Chiffre, o mítico Peter Lorre
("M, O Vampiro de Dusseldorf"), que o interpretou na
versão televisiva de 1954. Como
banqueiro de terroristas, é o
mais comum dos adversários
de Bond, desdramatizando a
trama para uma temperatura
abaixo da tradição da série.
"Cassino" convence assim
mais pelas partes do que pelo
todo, encenado com a competência habitual de Martin
Campbell, o mesmo que revitalizara a série também na estréia
de Brosnan em "007 contra
Goldeneye" (1995). A abertura
em preto-e-branco, que revela
como Bond se tornou 007, é
eletrizante, lembrando o grafismo de "Sin City" (2005).
Há ao menos duas perseguições antológicas, sobretudo a
que se passa na África. Já o embate decisivo no cassino perde
ritmo em excessivas rodadas de
carteado. Mas a seqüência final
não deixa dúvidas: Daniel Craig
veio para ficar.
CASSINO ROYALE
Direção: Martin Campbell
Produção: EUA/Reino Unido/Alemanha/República Tcheca, 2006
Com: Daniel Craig, Eva Green
Quando: em cartaz no Frei Caneca Arteplex, Iguatemi Cinemark e circuito
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