São Paulo, sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

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Crítica/cinema/"Cassino Royale"

Na brutal era Jack Bauer, Bond revive

AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Sim, com Daniel Craig e contra todas as apostas, 007 voltou. "Cassino Royale" não é o melhor nem sequer um dos melhores filmes da série. Mas é interessante o bastante para garantir a ressurreição de James Bond na era brutal de Jack Bauer ("24 Horas"). Com o fim da Guerra Fria, Bond parecia marcado para morrer. Pierce Brosnan veio resgatá-lo. Atlético e carismático, insuflou vida a um personagem agônico, estabelecendo novos recordes de bilheteria.
Mas o ponteiro continuou a correr. Tentaram compensá-lo com produções maiores, aposta ilimitada em efeitos especiais e roteiros apocalípticos desprovidos de qualquer sintonia com o universo literário de Ian Fleming. Bond já fora antipático, confuso e até ridículo.
A solução, como sempre, foi voltar as raízes. "Cassino Royale" é a primeira adaptação a sério para cinema do romance de estréia do espião britânico criado por Ian Fleming em 1953. A primeira versão audiovisual foi ao ar ao vivo em 1954 pela rede de TV americana CBS, num especial de uma hora que trazia Barry Nelson como um americanizado "Jimmy Bond" e Peter Lorre como o vilão Le Chiffre. A segunda adaptação, paródica, mobilizou em 1967 uma dúzia de diretores e roteiristas e escalou uma cascata de intérpretes para Bond, de Peter Sellers e David Niven a Woody Allen. Era um total escracho.
No batismo em livro, Bond enfrenta desafios muito mais prosaicos do que derrotar supervilões ou salvar o mundo. É jogando baralho, e não desarmando bombas nucleares, que o conflito essencial se resolve.
A contenção dramática do romance contamina saudavelmente o novo filme, ainda que o enredo original seja apenas marginalmente seguido.
Substituindo o cinqüentão Brosnan, Craig remete pela primeira vez em mais de 30 anos à crueza e à masculinidade de Sean Connery, o primeiro e definitivo intérprete de Bond.
Craig é loiro, e seu rosto retangular é quase feio. Mais musculoso do que alto, tem porte antes de estivador do que de oficial britânico. Bom ator, aposta no minimalismo.

Dimensão carnal
Nenhum Bond apanhou tanto quanto o de Craig. Nunca nas telas 007 dependeu tanto dos próprios punhos. Não há nenhum Q com seus "gadgets" para socorrê-lo. A exigência física do personagem parece uma reação clara às patacoadas virtuais dos filmes mais recentes.
A recuperação dessa dimensão carnal de 007 é muito mais bem resolvida do que a psicológica. Desabafos existenciais, ternos olhares e juras de amor casam mal com qualquer Bond se dissociados de certo ceticismo, quando não de alguma ironia. O idílico romance com a provedora de fundos do MI-6, Vesper (Eva Green), é uma das fragilidades do roteiro. Outro problema é Le Chiffre.
A escolha do ator Mads Mikkelsen para o papel do vilão deve muito à semelhança física que ele guarda com o primeiro Le Chiffre, o mítico Peter Lorre ("M, O Vampiro de Dusseldorf"), que o interpretou na versão televisiva de 1954. Como banqueiro de terroristas, é o mais comum dos adversários de Bond, desdramatizando a trama para uma temperatura abaixo da tradição da série.
"Cassino" convence assim mais pelas partes do que pelo todo, encenado com a competência habitual de Martin Campbell, o mesmo que revitalizara a série também na estréia de Brosnan em "007 contra Goldeneye" (1995). A abertura em preto-e-branco, que revela como Bond se tornou 007, é eletrizante, lembrando o grafismo de "Sin City" (2005).
Há ao menos duas perseguições antológicas, sobretudo a que se passa na África. Já o embate decisivo no cassino perde ritmo em excessivas rodadas de carteado. Mas a seqüência final não deixa dúvidas: Daniel Craig veio para ficar.


CASSINO ROYALE    
Direção: Martin Campbell
Produção: EUA/Reino Unido/Alemanha/República Tcheca, 2006
Com: Daniel Craig, Eva Green
Quando: em cartaz no Frei Caneca Arteplex, Iguatemi Cinemark e circuito


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