São Paulo, quinta, 16 de abril de 1998

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Se Odete Lara não vai mais ao cinema, o cinema vai a 'Lara'

Divulgação
Leandra Leal, que interpreta Odete Lara adolescente, contracena com Giuseppe Oristânio no filme "Lara", de Ana Maria Magalhães


Ledusha
Colunista da Folha

A cineasta e atriz Ana Maria Magalhães finalmente vai começar a rodar seu primeiro longa, "Lara", baseado na vida da atriz Odete Lara, no próximo mês.
O filme, dirigido e produzido por Ana Maria, terá Ana Paula Arósio, representando Odete Lara dos 18 anos em diante, e Leandra Leal ("A Ostra e o Vento"), a fase adolescente da atriz.
O argentino Ricardo Aronovitch (que já trabalhou com Ettore Scola e Louis Malle) é o diretor de fotografia de "Lara", que tem direção musical de Dori Caymmi.
Leia a seguir, entrevista da diretora à Folha, em que fala sobre o novo filme, influências e projetos.

Folha - Como você se sente diante dessa perspectiva de fazer seu primeiro longa baseado num personagem real, cuja trajetória é tão intensa, dramática e incomum?
Ana Maria Magalhães-
Eu só tive essa consciência recentemente. Eu me dei conta de que é uma ousadia e isso mexe com as pessoas. Mexe comigo, também. Sou uma conservadora ousada, uma conservadora de vanguarda, talvez. Uma pessoa muito ligada a alguns valores e princípios, não "certos princípios dos quais não abdico". Embora haja um rigor, que faz parte de mim -já fui muito criticada por isso- não sou retrógrada. Digo conservar para avançar, não para retroceder ou reter. É um conservadorismo para não desperdiçar o que já existe e ir mais além: é aí que está a ousadia. Percebi tardiamente que esse é um projeto ousado, mas atraente, com temas fortes. Tem um aspecto histórico da cultura brasileira. E me conscientizando disso, vi também que isso gera uma oposição. É uma oposição natural, de quem não quer mudar, há certas coisas das quais não se pode falar, alguns tabus.
Folha - E qual foi o princípio do projeto "Lara"?
Ana Maria -
Eu li o primeiro livro de Odete em 1975 e me impressionei profundamente; tinha 25 anos e me identifiquei como mulher e atriz. Sobretudo me admirei com a exposição dela, aquilo mexeu muito comigo e ali havia o germe de um filme que eu não tinha consciência, mesmo porque havia acabado de dirigir o meu primeiro documentário, ainda não era uma diretora. Mas esse germe ficou, como uma idéia longínqua, sem estar configurada.
Folha - E em que ponto você acha que a idéia de filmar a vida de Odete a fisgou exatamente?
Ana Maria -
Os anos se passaram e, em 88, numa conversa com Antônio Calmon, ele me perguntou porque não fazia a vida de Odete Lara; achava que eu poderia fazer muito bem esse filme. Essa sugestão fez aquele germe explodir naquela hora, assim: "Claro, tem tudo a ver comigo!" E dois dias depois encontrei a Odete num banco, uma coisa meio mágica. Falei sobre a minha idéia, ela achou interessante, mas não deve ter levado muita fé. Esse projeto não vingou e surgiu um outro, que foi "Erotique" (94). Quando ganhei o prêmio da CNBB (o melhor prêmio que poderia ter ganho), com o vídeo "Mangueira do Amanhã", que é a menina dos meus olhos, me comovi demais. Fiz um discurso emocionadíssimo de agradecimento e fui muito aplaudida porque falei da Ressurreição. Esse é o tema de "Lara". Esse tema já vinha se avolumando havia algum tempo na minha vida. Depois de sofrer um acidente muito grave em que entrei num estado de pré-coma e vi a morte, ele tornou-se mais imperativo.
Folha - Pode-se dizer que "Lara" atravessa uma via autobiográfica?
Ana Maria -
Estou indo fundo no que Odete já foi. Acho, aliás, que ela só conseguiu bons resultados, ser a mulher que é hoje, com toda sua grandeza, porque foi fundo. Quando você está lidando com um assunto de ficção, procura em você os pontos em comum, coloca suas coisas também. Não estou fazendo um filme para dizer que fiz, ou sobre algo que me contaram. Estou fazendo um filme sobre o meu íntimo. É uma coisa vital, como um exorcismo dessa morte que eu vivi. Estou exorcizando o sofrimento inteiro da minha vida, da vida de Odete e a transcendência desse sofrimento.
Folha - Que estilo de narrativa foi usado no roteiro?
Ana Maria -
O que eu posso te dizer é que não é um filme realista e tem uma estrutura não-linear. Como há muita subjetividade, muita riqueza de material -porque é uma atriz que interpreta textos, que faz psicanálise, tem a sua subjetividade muito desenvolvida, uma pessoa introvertida- , isso te dá muitas margens, ao mesmo tempo que cria dificuldades, também te abre janelas. A roteirista Paula Cavalcanti e eu, com a colaboração de Filipe Miguez, optamos por contar a história de uma maneira não-realista, mas que dá conta dessa história envolvendo temáticas diferentes. A história não é contada em ordem cronológica, mas é perfeitamente compreensível. Há coisas que eu já não sei se são da vida dela ou se inventei, o importante é que estou mantendo o espírito da personalidade dela, o espírito da história.
Folha - "Lara" é uma reflexão sobre a condição humana ou sobre a condição feminina?
Ana Maria -
Talvez o filme privilegie a condição feminina, mas muito mais que isso, a condição humana. O problema é que a condição humana se reporta à condição feminina por se tratar de um personagem feminino. Também trata da condição feminina no tempo. A história se passa nos anos 40 em São Paulo e nos anos 50 no Rio, uma época em que muitas conquistas ainda não haviam sido feitas pelas mulheres. Você vê uma foto de Odete em 51 apresentando um desfile de moda, sobriamente vestida de tailleur, aparentando muito mais idade do que tinha. As mulheres, nessa época, se vestiam como senhoras. Isso tem um significado, evidentemente.
Folha - Odete Lara possui traços avançados para a época: uma visão própria do mundo, da condição feminina, sua busca de independência pelo trabalho, da libertação por meio da psicanálise etc. Por outro lado, carrega um lado mais ancestral e sombrio. Como você pretende abordar esses seus traços contraditórios?
Ana Maria -
A personagem Lara tem um lado arquetípico, por isso antigo, que é o lado trágico, dramático, senhora. Mas há outro moderníssimo, de vanguarda. É praticamente uma pessoa que inova em tudo, que é extremamente competente em tudo o que faz, desde ser secretária, atriz, nas traduções que ela faz hoje, sua dedicação ao budismo, é tudo feito com muita competência. Eu acho que há, sim, coisas antigas e coisas modernas, e é um clássico, embora a narrativa, a estrutura do roteiro seja moderna.
Folha - O elenco está montado?
Ana Maria -
Quase todo. Dos 11 aos 18 anos, infância e juventude, Leandra Leal fará a Lara. Vera Fischer faria Lara adulta, mas já havia assumido compromissos antes com o teatro e não teria disponibilidade para fazer o filme. Acabamos de fazer testes com Ana Paula Arósio, e ela fará Lara a partir dos 18 anos. Giuseppe Oristânio fará um diretor de teatro italiano. Estamos fazendo alguns testes com o elenco masculino.
Folha - Quais filmes e diretores marcaram a sua vida?
Ana Maria -
O primeiro filme que vi na minha vida foi "Luzes da Ribalta", de Chaplin. Foi definitivo para me tornar atriz. Um filme que vi aos 12 anos e que foi um impacto muito grande, uma paixão, foi "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Nesse filme vi pela primeira vez o sertão de que meu pai falava, contava as histórias. Trabalhar com Glauber foi das melhores coisas que me aconteceram na vida, além da amizade. Um homem íntegro, uma pessoa bonita, me comovo muito quando falo dele, sinto uma saudade muito grande. Era um amigo de fato, um irmão. Sem dúvida, foi o artista do século no Brasil. Há outra pessoa que de uma certa forma me iniciou no cinema, que foi o Nelson Pereira dos Santos, embora já fosse atriz quando o conheci. Ele me introduziu nos mistérios do verdadeiro cinema, do convívio, da equipe, do prazer do trabalho, me colocou na moviola, onde pude fazer um estágio em edição e tomei mais intimidade com a parte de direção de cinema.
Folha - Você já tem outros projetos em vista?
Ana Maria -
Estou pensando em montar uma peça de teatro na qual atuarei também como atriz. Também gostaria de escrever, mas não sei ainda se sou capaz, se poderia ser uma escritora ou não. Há dois projetos: um é a minha biografia, que já tem quatro capítulos escritos, na forma de ensaios autobiográficos. O outro é um livro de contos, sobre algumas situações de relação homem/mulher -acho que sabemos muito pouco sobre isso-, mas das maneiras mais absurdas, tratando de relações não convencionais, óbvio. Senão não dá boa história. É ou não é?



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