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Se Odete Lara não vai mais ao cinema, o cinema vai a 'Lara'
Divulgação
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Leandra Leal, que interpreta Odete Lara adolescente, contracena com Giuseppe Oristânio no filme "Lara", de Ana Maria Magalhães
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Ledusha
Colunista da Folha
A cineasta e atriz Ana Maria Magalhães finalmente vai começar a
rodar seu primeiro longa, "Lara",
baseado na vida da atriz Odete Lara, no próximo mês.
O filme, dirigido e produzido
por Ana Maria, terá Ana Paula
Arósio, representando Odete Lara
dos 18 anos em diante, e Leandra
Leal ("A Ostra e o Vento"), a fase
adolescente da atriz.
O argentino Ricardo Aronovitch
(que já trabalhou com Ettore Scola
e Louis Malle) é o diretor de fotografia de "Lara", que tem direção
musical de Dori Caymmi.
Leia a seguir, entrevista da diretora à Folha, em que fala sobre o
novo filme, influências e projetos.
Folha - Como você se sente diante dessa perspectiva de fazer seu
primeiro longa baseado num personagem real, cuja trajetória é tão
intensa, dramática e incomum?
Ana Maria Magalhães- Eu só tive essa consciência recentemente.
Eu me dei conta de que é uma ousadia e isso mexe com as pessoas.
Mexe comigo, também. Sou uma
conservadora ousada, uma conservadora de vanguarda, talvez.
Uma pessoa muito ligada a alguns
valores e princípios, não "certos
princípios dos quais não abdico".
Embora haja um rigor, que faz
parte de mim -já fui muito criticada por isso- não sou retrógrada. Digo conservar para avançar,
não para retroceder ou reter. É um
conservadorismo para não desperdiçar o que já existe e ir mais
além: é aí que está a ousadia. Percebi tardiamente que esse é um
projeto ousado, mas atraente, com
temas fortes. Tem um aspecto histórico da cultura brasileira. E me
conscientizando disso, vi também
que isso gera uma oposição. É uma
oposição natural, de quem não
quer mudar, há certas coisas das
quais não se pode falar, alguns tabus.
Folha - E qual foi o princípio do
projeto "Lara"?
Ana Maria - Eu li o primeiro livro de Odete em 1975 e me impressionei profundamente; tinha 25
anos e me identifiquei como mulher e atriz. Sobretudo me admirei
com a exposição dela, aquilo mexeu muito comigo e ali havia o germe de um filme que eu não tinha
consciência, mesmo porque havia
acabado de dirigir o meu primeiro
documentário, ainda não era uma
diretora. Mas esse germe ficou, como uma idéia longínqua, sem estar configurada.
Folha - E em que ponto você
acha que a idéia de filmar a vida
de Odete a fisgou exatamente?
Ana Maria - Os anos se passaram e, em 88, numa conversa com
Antônio Calmon, ele me perguntou porque não fazia a vida de
Odete Lara; achava que eu poderia
fazer muito bem esse filme. Essa
sugestão fez aquele germe explodir
naquela hora, assim: "Claro, tem
tudo a ver comigo!" E dois dias depois encontrei a Odete num banco, uma coisa meio mágica. Falei
sobre a minha idéia, ela achou interessante, mas não deve ter levado muita fé. Esse projeto não vingou e surgiu um outro, que foi
"Erotique" (94). Quando ganhei o
prêmio da CNBB (o melhor prêmio que poderia ter ganho), com o
vídeo "Mangueira do Amanhã",
que é a menina dos meus olhos,
me comovi demais. Fiz um discurso emocionadíssimo de agradecimento e fui muito aplaudida porque falei da Ressurreição. Esse é o
tema de "Lara". Esse tema já vinha
se avolumando havia algum tempo na minha vida. Depois de sofrer
um acidente muito grave em que
entrei num estado de pré-coma e
vi a morte, ele tornou-se mais imperativo.
Folha - Pode-se dizer que "Lara"
atravessa uma via autobiográfica?
Ana Maria - Estou indo fundo
no que Odete já foi. Acho, aliás,
que ela só conseguiu bons resultados, ser a mulher que é hoje, com
toda sua grandeza, porque foi fundo. Quando você está lidando com
um assunto de ficção, procura em
você os pontos em comum, coloca
suas coisas também. Não estou fazendo um filme para dizer que fiz,
ou sobre algo que me contaram.
Estou fazendo um filme sobre o
meu íntimo. É uma coisa vital, como um exorcismo dessa morte que
eu vivi. Estou exorcizando o sofrimento inteiro da minha vida, da
vida de Odete e a transcendência
desse sofrimento.
Folha - Que estilo de narrativa foi
usado no roteiro?
Ana Maria - O que eu posso te
dizer é que não é um filme realista
e tem uma estrutura não-linear.
Como há muita subjetividade,
muita riqueza de material -porque é uma atriz que interpreta textos, que faz psicanálise, tem a sua
subjetividade muito desenvolvida,
uma pessoa introvertida- , isso te
dá muitas margens, ao mesmo
tempo que cria dificuldades, também te abre janelas. A roteirista
Paula Cavalcanti e eu, com a colaboração de Filipe Miguez, optamos por contar a história de uma
maneira não-realista, mas que dá
conta dessa história envolvendo
temáticas diferentes. A história
não é contada em ordem cronológica, mas é perfeitamente compreensível. Há coisas que eu já não
sei se são da vida dela ou se inventei, o importante é que estou mantendo o espírito da personalidade
dela, o espírito da história.
Folha - "Lara" é uma reflexão sobre a condição humana ou sobre a
condição feminina?
Ana Maria - Talvez o filme privilegie a condição feminina, mas
muito mais que isso, a condição
humana. O problema é que a condição humana se reporta à condição feminina por se tratar de um
personagem feminino. Também
trata da condição feminina no
tempo. A história se passa nos
anos 40 em São Paulo e nos anos 50
no Rio, uma época em que muitas
conquistas ainda não haviam sido
feitas pelas mulheres. Você vê uma
foto de Odete em 51 apresentando
um desfile de moda, sobriamente
vestida de tailleur, aparentando
muito mais idade do que tinha. As
mulheres, nessa época, se vestiam
como senhoras. Isso tem um significado, evidentemente.
Folha - Odete Lara possui traços
avançados para a época: uma visão própria do mundo, da condição feminina, sua busca de independência pelo trabalho, da libertação por meio da psicanálise etc.
Por outro lado, carrega um lado
mais ancestral e sombrio. Como
você pretende abordar esses seus
traços contraditórios?
Ana Maria - A personagem Lara
tem um lado arquetípico, por isso
antigo, que é o lado trágico, dramático, senhora. Mas há outro
moderníssimo, de vanguarda. É
praticamente uma pessoa que inova em tudo, que é extremamente
competente em tudo o que faz,
desde ser secretária, atriz, nas traduções que ela faz hoje, sua dedicação ao budismo, é tudo feito
com muita competência. Eu acho
que há, sim, coisas antigas e coisas
modernas, e é um clássico, embora a narrativa, a estrutura do roteiro seja moderna.
Folha - O elenco está montado?
Ana Maria - Quase todo. Dos 11
aos 18 anos, infância e juventude,
Leandra Leal fará a Lara. Vera Fischer faria Lara adulta, mas já havia
assumido compromissos antes
com o teatro e não teria disponibilidade para fazer o filme. Acabamos de fazer testes com Ana Paula
Arósio, e ela fará Lara a partir dos
18 anos. Giuseppe Oristânio fará
um diretor de teatro italiano. Estamos fazendo alguns testes com o
elenco masculino.
Folha - Quais filmes e diretores
marcaram a sua vida?
Ana Maria - O primeiro filme
que vi na minha vida foi "Luzes da
Ribalta", de Chaplin. Foi definitivo
para me tornar atriz. Um filme que
vi aos 12 anos e que foi um impacto
muito grande, uma paixão, foi
"Deus e o Diabo na Terra do Sol".
Nesse filme vi pela primeira vez o
sertão de que meu pai falava, contava as histórias. Trabalhar com
Glauber foi das melhores coisas
que me aconteceram na vida, além
da amizade. Um homem íntegro,
uma pessoa bonita, me comovo
muito quando falo dele, sinto uma
saudade muito grande. Era um
amigo de fato, um irmão. Sem dúvida, foi o artista do século no Brasil. Há outra pessoa que de uma
certa forma me iniciou no cinema,
que foi o Nelson Pereira dos Santos, embora já fosse atriz quando o
conheci. Ele me introduziu nos
mistérios do verdadeiro cinema,
do convívio, da equipe, do prazer
do trabalho, me colocou na moviola, onde pude fazer um estágio
em edição e tomei mais intimidade
com a parte de direção de cinema.
Folha - Você já tem outros projetos em vista?
Ana Maria - Estou pensando
em montar uma peça de teatro na
qual atuarei também como atriz.
Também gostaria de escrever, mas
não sei ainda se sou capaz, se poderia ser uma escritora ou não. Há
dois projetos: um é a minha biografia, que já tem quatro capítulos
escritos, na forma de ensaios autobiográficos. O outro é um livro de
contos, sobre algumas situações
de relação homem/mulher -acho
que sabemos muito pouco sobre
isso-, mas das maneiras mais absurdas, tratando de relações não
convencionais, óbvio. Senão não
dá boa história. É ou não é?
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