São Paulo, Sexta-feira, 16 de Abril de 1999
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Tiradentes


Filme de Oswaldo Caldeira, que estréia hoje, apresenta um herói quixotesco e sensual na liderança da Inconfidência


JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

JOÃO LEIVA FILHO
editor-adjunto de Especiais

"Tiradentes" é um filme ambicioso. Com base numa extensa pesquisa histórica, Oswaldo Caldeira apresenta uma nova versão da Inconfidência Mineira (1789).
O roteiro do filme fez parte da tese de doutorado defendida por Caldeira na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 94, sobre "A Imagem de Tiradentes". Caldeira, 55, diretor de "Ajuricaba", "O Bom Burguês" e "O Grande Mentecapto", falou à Folha sobre os aspectos mais polêmicos de "Tiradentes".

Folha - Que imagem de Tiradentes você quis construir no filme?
Oswaldo Caldeira -
Quando me interessei pelo tema, há uns dez anos, descobri que não havia representações de época: nem pinturas, nem desenhos, nem descrições escritas. Tiradentes não tem cara e ao mesmo tempo tem milhares de caras. Percebi que estava aberto o caminho para a representação.
Eu quis fugir da imagem oficial, consagrada na campanha republicana e reforçada pelos governos militares, que era a de um Tiradentes divinizado, um mártir sofrido, inspirado em Cristo. Eu quis fazer um Tiradentes viril, aventureiro, sensual, lutador. Um cara para cima, que construía estradas, conhecia mineralogia e rudimentos de medicina. Mas também com um lado ingênuo, quixotesco, frágil.
Folha - Outros inconfidentes parecem ter seus papéis minimizados (veja arte ao lado). Gonzaga aparece como poeta apaixonado, mais preocupado com Marília do que com a conspiração, e Claudio Manuel da Costa surge quase no final.
Caldeira -
Lendo os autos da devassa, me dei conta da mistura da vida cotidiana com as articulações da Inconfidência. Por exemplo, o Alvarenga Peixoto se atrasa para uma reunião por estar jogando gamão. Alguém lhe entrega um bilhete, cobrando sua presença, e ele responde que depois que parar a chuva ele vai. É o herói que não se molha (risos). Eu quis fugir da narrativa causal tradicional e mostrar o entrelaçamento entre o cotidiano (a compra do peixe, o namorico, gamão) e coisas ditas sérias.
Folha - Qual é a sua visão geral da Inconfidência?
Caldeira -
Minha visão não é a do historiador, nem pretende trazer a verdade. O que constatei, pelos autos, é que o movimento que tentou implantar pela primeira vez a nação é a narrativa do não. "Você estava na conspiração?" "Eu não. Fulano estava, mas eu não. Nesse dia eu estava comendo peixe." Esse labirinto, essa pluralidade de agentes e vozes, é que é fascinante para mim, mais que uma interpretação fechada sobre o movimento.
Folha - Por que o filme sugere que Claudio Manuel da Costa não se matou, mas foi assassinado?
Caldeira -
Achei a versão do Kenneth Maxwell, no livro "A Devassa da Devassa", a mais convincente. Segundo ele, tudo indica que Claudio foi assassinado. Não diz que foi o Macedo, mas eu também não.
Percebi a possibilidade poética de usar o embuçado, que pode ser várias pessoas, até mesmo a Morte. Preservei uma certa ambiguidade, mas concordo que pesa mais a sugestão de que Macedo mandou matá-lo porque ele era inconveniente e poderia comprometê-lo.
Folha - Um personagem que tem um tratamento mais ousado e alegórico é o Silvério dos Reis. Desde o início ele aparece como uma figura melíflua, maligna e fala diretamente com a câmera.
Caldeira -
Tiradentes e Silvério são os personagens que mais se destacam de uma postura realista. Eu queria uma narrativa de gramática tradicional, com crescimento da tensão, montagem paralela etc., mas que de repente fosse rompida.
O que leva o espectador para a tela? É a câmera subjetiva, o campo/ contracampo. Achei interessante vir trabalhando a subjetividade e desembocar numa coisa absurda, em que o vilão procurasse seduzir o espectador para se projetar nele.
Para isso, precisava ser caracterizado como vilão mesmo, sinistro como numa aventura juvenil.
Folha - E é uma provocação forçar a identificação do espectador com uma atitude corrupta, patife.
Caldeira -
Exatamente. Quando inventei o Silvério, eu queria que ele fosse sedutor. Ele é o lado negro, o capeta, mas também é o Narciso, o Don Juan, o Drácula de Coppola. Os jovens o acham o máximo, porque ele é irreverente.
Folha - Por que você retratou o Aleijadinho como uma figura simiesca e sinistra, quase um corcunda de Notre Dame...
Caldeira -
O escritor cubano Lezama Lima fala de um Aleijadinho diabólico, um mulato que percorre a noite. Os portugueses construindo a ordem. Ele, a desordem. Outro pesquisador diz que ele era um "comedor" de mulheres.
Como Tiradentes e a mulher do Tiradentes, Antonia, ele é uma figura da desordem. Por isso, na cena em que eles se cruzam, na noite, dei um tratamento fantástico.
Folha - Aliás, o filme tem uma grande variedade de estilos, tons, gêneros. Cada sequência tem um tratamento diferente. Por quê?
Caldeira -
É uma questão de geração. Meu primeiro filme é de 67. Minhas preocupações eram Antonioni, Godard, Sartre, o existencialismo, mas, como vivíamos sob a ditadura, meus filmes eram de esquerda, com personagens meio desbundados. "Tiradentes" nasceu como um balanço, como se eu dissesse: vamos fechar essa coisa. Acabou uma fase da minha vida, uma fase do Brasil, o cinema novo. E eu sou filho do cinema novo.
Folha - "Tiradentes" é o último filme do cinema novo?
Caldeira -
Do "meu" cinema novo é. Quanto à heterogeneidade, o filme tem isso do cinema dentro do cinema: thriller, drama, aventura, citações literárias, teatro. Eu quis fazer um filme agradável, mas me reservo o direito de não ser didático, nem convencional.


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