São Paulo, quarta-feira, 16 de maio de 2007

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O poderoso Chefão

Em "Calor", recém-lançado no Brasil, o jornalista Bill Buford traça o perfil de Mario Batali, o Don Corleone da gastronomia dos EUA; à Folha, o autor compara o ato de escrever ao de cozinhar

Beth Keiser/Associated Press
O chef de cozinha Mario Batali, dono do restaurante Babbo, a quem o jornalista acompanhou em seu "ano sabático" gastronômico


SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

Bill Buford estava com a vida ganha. Tinha em seu currículo o fato de ser o editor-fundador da nova fase da "Granta", a melhor revista literária de língua inglesa, criada em 1889 por estudantes de Cambridge, relançada em 1979 e editada pelos próximos 16 anos por esse jornalista da Louisiana, que fez a circulação pular de centenas de exemplares para 100 mil.
Tinha um empregão, editor de literatura de ficção da revista "New Yorker", que ocupava por oito anos. E um livro de sucesso, "Entre os Vândalos" ("Among the Thugs", 1992), investigação sobre o fenômeno dos "hooligans", os violentos fãs de futebol britânicos.
O que esse homem calvo como uma cebola descascada faz agora cortando cenouras com a ponta de um de seus dedos pendurada por um pedaço de pele e presa por uma luva cirúrgica, na cozinha do Babbo, um dos restaurantes mais badalados de Manhattan, suando pela testa, num ambiente sem janela, no qual dezenas de pessoas se acotovelam? Sem ganhar nada?
Chame de crise de meia-idade, se quiser. Buford via a vizinhança dos 50 se aproximando. Nos EUA, uns compram um Porsche conversível. Outros arrumam uma amante. Ele resolveu largar tudo e "aprender a cozinhar". Nesse seu "ano sabático" gastronômico, foi bancado por dois personagens.
O exagerado Mario Batali, dono do Babbo e que está para a gastronomia italiana atual nos EUA como o personagem de Don Corleone estava para a máfia de Nova York de 1900 em "O Poderoso Chefão", foi seu patrocinador nos primeiros passos, a chegada à cozinha e o domínio da técnica. O intempestivo Dario Cecchini, chamado pela imprensa de "o melhor açougueiro do mundo", foi seu guia espiritual na Itália.
A biografia dos dois mais a experiência do próprio e trechos da história da gastronomia é o que Buford, 53, reúne em "Calor - Aventuras de um Cozinheiro Amador como Escravo da Cozinha de um Restaurante Famoso, Fazedor de Macarrão e Aprendiz de Açougueiro na Toscana", que a Companhia das Letras lança agora no Brasil, conforme conta à Folha por telefone de Nova York.
 

FOLHA - O que dá mais trabalho? Reportar ou cozinhar?
BILL BUFORD -
[Risos] Eu ainda acho que escrever é a profissão mais dura de todas. Ser um cozinheiro é um trabalho extenuante fisicamente e não há dúvida de que no final do dia você está sofrendo e cansado, mas é fazer algo com as mãos, enquanto escrever é fazer surgir algo do que não existe.

FOLHA - Há semelhanças?
BUFORD -
Mais do que se pensa, ao menos na Europa e nos EUA, o papel do cozinheiro mudou. Antes, chefs eram esquisitões que só saíam em turma. Hoje, não. Outro dia, jantei com Eric Riperto, do restaurante Le Bernardin, e na mesa estavam Salman Rushdie, intelectuais... Há o consenso de que cozinhar e escrever estão na mesma disciplina criativa.

FOLHA - O livro narra sua transformação, do jornalista que sai com uma sugestão de reportagem e acaba se tornando um "escravo" de uma cozinha. Em que momento o sr. se viu "cruzando a fronteira"?
BUFORD -
Creio que eu a atravessei várias vezes. No começo, queria só fazer o perfil do Mario Batali para a "New Yorker" -e aproveitar para satisfazer a curiosidade de saber como é a vida de um chef. Mas acho que a "transformação" aconteceu quando eu já estava trabalhando havia um ano na cozinha de um dos restaurantes dele e já dominava as técnicas dos meus "colegas", que já não me vinham como alguém diferente.

FOLHA - Qual a atração do "largar tudo" e se reinventar para a sua geração?
BUFORD -
No rumo natural das coisas, acabamos virando especialistas, o profissional moderno é focado em apenas um assunto. Fazemos isso porque somos bons, teoricamente, e porque conseguimos ganhar a vida com isso. Mas, ao virarmos especialistas, paramos de aprender. Isso foi o que mais me atraiu. Comecei a aprender coisas de novo. Aprendi a cortar diversos tipos de animais, a preparar a mesma comida de maneiras diferentes, estava num estado de "hiper-educação". A outra coisa é que nós realmente nos tornamos terrivelmente ignorantes sobre comida ao longo dos anos. E a comida nos interessa, precisamos dela para viver, a história e a preparação interessam às pessoas. O que move o livro é tentar sobrepor essa ignorância.

FOLHA - Havia o desejo de evitar fazer mais uma biografia de chef?
BUFORD -
Sim. Não foi difícil, porque Mario é um grande personagem, mas poderia ter morrido em poucas páginas, no sentido de que talvez só sua vida não segurasse o interesse do leitor. Ele falou: "Ok, desde que você não cometa mais indiscrições do que as que fez no artigo" [em que Buford relata seu problema com drogas, como a vez em que ele e amigos assam um disco de pizza para cheirar cocaína sobre ele].

FOLHA - O sr. acha que a popularidade do canal pago Food Network mudou a maneira como os americanos se relacionam com a comida?
BUFORD -
Mudou a vida do Mario, isso é certo. Acho que a maioria dos programas é horrível e interessante como sintoma da psiquê americana. As pessoas vêem não para aprender a cozinhar, mas para ter a experiência de cozinhar sem pôr a mão na massa. É quase uma pornografia, um símbolo de uma cultura tão ignorante sobre sua própria comida que acha interessante ver pessoas fazendo comida.


CALOR
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras (a partir de amanhã, nas livrarias)
Quanto: R$ 49,50 (424 págs.)
Leia íntegra da entrevista


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