São Paulo, sábado, 16 de maio de 2009

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ANTONIO CICERO

Os perigos da espontaneidade


Há poucos dias confirmei que muito do que nos vem espontaneamente não passa de eco

TANTO O poeta francês Paul Valéry quanto o nosso João Cabral de Melo Neto, que costumava citar o primeiro, desconfiavam de que tudo o que lhes chegasse espontaneamente, à maneira de inspiração, era eco de alguma coisa que houvessem lido, ouvido ou percebido de alguma maneira. Por isso, só confiavam no que resultasse de um trabalho rigoroso, que eliminasse tudo o que fosse alheio.
Concordo com isso. Na verdade, acho que há, sem dúvida, no próprio João Cabral, algo que não vem do trabalho e que poderia ser chamado de "inspiração". Entretanto, parece-me que ela ocorre principalmente durante o próprio trabalho, que, pondo o poeta ante problemas imprevisíveis, exige dele uma extraordinária abertura e receptividade para o aproveitamento criativo daquilo que o acaso, o inconsciente, o inesperado, enfim, oferecem. Como diz Heráclito, "aquele que não espera o inesperado não o encontra".
De todo modo, há poucos dias uma experiência me confirmou o fato de que muito do que nos vem espontaneamente não passa de eco.
Ao escrever um verbete intitulado "Verso" para a revista "Serrote", falei, em determinado momento, do recurso poético chamado "enjambement" ou "cavalgamento" (a palavra francesa é tão mais usada entre nós do que a portuguesa que acabo de notar que meu corretor ortográfico marca esta como errada, e não aquela). Trata-se, como bem o define o "Aurélio", do "processo poético de pôr no verso seguinte uma ou mais palavras que completem o sentido do verso anterior". O exemplo aureliano são os belos versos de Camões: "Debaixo dos pés duros dos ardentes/ Cavalos treme a terra, os vales soam".
Os poetas modernos usam mais o enjambement do que os clássicos. De fato, com o verso livre, a importância expressiva do enjambement aumentou. Querendo dar um exemplo disso, lembrei logo de alguns versos de um livro que iluminou minha adolescência, "A Rosa do Povo", de Carlos Drummond de Andrade, mestre absoluto do enjambement. Do poema "Consideração do Poema", por exemplo, lembrei dos seguintes: "Que Neruda me dê sua gravata/ chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakóvski".
O final do verso exige uma pausa na apreensão do poema pelo leitor. O primeiro verso parece conter um pensamento completo. Entretanto, o enjambement faz com que a sentença, não coincidindo com o verso, termine no verso seguinte: "chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski".
Nesse poema, Drummond pretende estar sem-cerimoniosamente a pedir, aos poetas que admira, elementos com os quais compor seus próprios poemas. A Neruda ele pede a gravata. Ocorre que a gravata é um item formal e convencional do vestuário masculino, um laço em torno do pescoço de quem usa. Assim, metaforicamente, a gravata seria uma forma convencional que tornaria o poema um tanto preso, mas "composto", no sentido de socialmente aceitável. Uma forma fixa seria mais ou menos isso. Contudo, a palavra "chamejante", do verso seguinte, muda tudo. Uma gravata chamejante já é o oposto de uma convenção: trata-se da convenção em chamas, e lembra a gravata amarela, usada provocativamente pelo poeta revolucionário Maiakóvski, cujo nome é a última palavra do verso.
Esse exemplo era bom, mas uma inspiração súbita, como uma lufada de ar, trouxe-me à mente outro, ainda melhor. Refiro aos versos de "A Flor e a Náusea" que dizem: "Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido, sequer colocado".
Aqui, evidentemente, enquanto o primeiro verso diz algo que parece motivo de felicidade, o segundo nos faz cair na realidade, transfigurando o sentido do primeiro verso para uma espécie de sonho passageiro. Esse efeito poético do enjambement não poderia ser obtido em prosa.
Incluí esse exemplo no verbete e me dei por satisfeito. Tinha sido um grande achado. Pois bem, ontem, tentando pôr em ordem os papéis que imprimo diariamente, seja de textos meus, seja de outros, tomei um susto quando me deparei com uma página de um artigo que eu havia recebido por e-mail no ano passado, em que exatamente esses dois versos eram citados como exemplo de enjambement.
Trata-se do ensaio "Do Começo ao Fim do Poema", do poeta Alberto Pucheu. Na época, eu não tinha tido tempo de o ler de cabo a rabo, de modo que o guardara para depois. Mas aquilo era coincidência demais. Com certeza eu tinha passado os olhos por aquele exemplo de enjambement e ele me ficara na cabeça. E mais uma vez me dei conta de como Cabral e Valéry tinham razão de desconfiar de tudo o que chega espontaneamente.


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