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MANUEL DA COSTA PINTO
Pensamento apátrida
"Bodenlos" traz autobiografia de Vilém Flusser, filósofo tcheco que viveu no Brasil e escrevia em português
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O NOME de Vilém Flusser vem
sendo redescoberto internacionalmente com a realização de congressos e a reedição de
seus livros. Mas é justamente no
Brasil que não poderia ser esquecido
-pois este filósofo nascido na Tchecoslováquia desenvolveu seu pensamento em São Paulo e em "língua
brasileira", como mostra "Bodenlos:
Uma Autobiografia Filosófica".
A dialética entre memória e esquecimento e o trânsito lingüístico
estão no coração de suas reflexões,
indissociáveis de uma trajetória de
desenraizamento. Não por acaso,
"Bodenlos" quer dizer "sem chão",
"sem terra", mas também "sem fundamento" -como explica o prefácio
de Gustavo Bernardo.
O filósofo judeu deixou a cidade de
Praga (onde nasceu em 1920) após a
ofensiva nazista sobre seu país. Em
1939, foi para a Inglaterra e, no ano
seguinte, chegou ao Brasil. Autodidata, deu aulas em universidades
paulistas, mas manteve-se à parte
do tecnicismo acadêmico.
Nesse sentido, assemelha-se ao filósofo Vicente Ferreira da Silva
(1916-1963) -a quem dedicou três
ensaios publicados em "Da Religiosidade" (Escrituras). E, como este,
morreu num acidente de automóvel, no dia seguinte a seu retorno a
Praga, para uma conferência no Instituto Goethe, em 1991.
"Bodenlos" inclui lembranças de
encontros com o pensador brasileiro e sua mulher, a poeta Dora Ferreira da Silva, com artistas como Mira Schendel e Samson Flexor e os escritores Guimarães Rosa e Haroldo
de Campos. Com todos eles, a cumplicidade se faz pela linguagem, vista
como arquipélago de frágeis ilhotas
de significação em meio ao naufrágio da história.
Nada disso é estranho à experiência moderna da perda dos fundamentos, que o pensador tcheco incorpora no livro "Língua e Realidade". Em "Bodenlos", importa o modo como a vivência concreta do exílio se converte em filosofia apátrida.
Escrito em português (idioma que o
poliglota Flusser elegeu, desafiando
o ditado segundo o qual "só é possível filosofar em alemão"), o livro recapitula suas ilusões em relação ao marxismo e ao sionismo durante o
idílio de uma Praga cosmopolita.
Ao aportar no Brasil, ele está vacinado contra os discursos sobre a
identidade nacional e, trazendo no
bolso a filosofia de Wittgenstein e a
ficção de Kafka, afirma que "pensar
é pecar porque gira em roda infernal, roda esta que não toca a realidade, a qual, em sua estupidez impensável, nos tritura".
Em outras palavras, Flusser buscou nesse país de comerciantes iletrados, nessa terra de ninguém, uma
forma de vida que ao mesmo tempo
esquecesse os dogmatismos arcaicos e escapasse das tautologias da lógica (que separa o "pensável" da
existência). Com isso, formula a tarefa de "habitar a casa na apatridade" -expressão que dá nome a um
dos capítulos de "Bodenlos" e designa a possibilidade de viver na negatividade redentora da linguagem.
BODENLOS: UMA AUTOBIOGRAFIA FILOSÓFICA
Autor: Vilém Flusser
Editora: Annablume
Quanto: R$ 35 (246 págs.)
Avaliação: ótimo
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