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crítica
Obra silencia sobre lutas dos minoritários
MARCIO GOLDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Divisões Perigosas" dá continuidade a uma conhecida intervenção política
contra o Estatuto da Igualdade Racial e a lei de cotas em
tramitação no Congresso
Nacional: de seus 46 artigos,
dois terços já foram publicados em jornais e revistas de
grande circulação nacional
(11 deles na Folha). Seu argumento não é menos conhecido: qualquer política
pública em benefício dos que
sofrem discriminação racial
é perigosa e corresponde a
uma forma de racismo.
Se a intervenção é política,
sua legitimidade é buscada
na qualificação profissional
dos autores. O que permitiria esperar mais rigor nos
textos e uma maior clareza
na explicitação das opções
intelectuais adotadas. Mas
não é difícil perceber, desde
o título, os pressupostos de
"Divisões Perigosas": falar
em raça é "perigoso" porque
"divide" uma unidade transcendente, a humanidade (alguns preferem a sociedade
ou a identidade nacional), e
porque, garantem os cientistas naturais que colaboram
no livro, "raça" não existe. O
que "existe" é, de um lado, o
"código genético"; de outro,
completam os cientistas sociais, a estrutura e os valores
da sociedade brasileira (que,
asseguram, não é racista).
Conceito de raça
Se raça foi durante muito
tempo um conceito tido por
científico, o reconhecimento
de que certezas passadas da
ciência não passam, hoje, de
erros, deveria levar a uma
certa modéstia, não a novas
certezas mais uma vez disseminadas com "autoridade
científica".
Intelectuais acostumados
a lidar com a construção social do conhecimento, a inextricável mistura de ciência e
interesses e a pôr os fenômenos em seu contexto, deveriam admitir que a recusa do
conceito de raça pela genética não significa a "descoberta" de que raças não existem.
E que essa recusa não tem o
poder de fazer calar categorias homônimas utilizadas
por outros agentes sociais
em suas lutas.
Isso não ocorre apenas
quando se evoca a ciência para garantir a inexistência das
raças, mas também quando
se opõe a "verdadeira" história da África ou a estrutura
"real" da sociedade brasileira
ao que se considera meras
ilusões. "Desessencializar" é
tarefa complexa, especialmente quando, via de regra,
consiste na substituição de
uma essência por outra.
Enfrentar o racismo
"Raça" não é nem uma coisa cuja existência ou inexistência poderia ser arbitrada
pela ciência, nem um simples recorte equivocadamente efetuado em uma unidade
originária. É uma categoria
que pode ordenar de diferentes maneiras a diversidade
do real e da experiência.
Quando os movimentos negros falam em raça, não estão
se referindo a genótipos ou a
louváveis ideais abstratos de
igualdade, mas a experiências coletivas de discriminação e resistência.
Quando o combate às desigualdades raciais assume a
forma de políticas públicas é
para enfrentar o racismo no
campo sociopolítico, não
apenas no das ideologias e
preconceitos.
Ao silenciar sobre as lutas
e reivindicações dos movimentos minoritários, o livro
converte alvos do racismo
em racistas potenciais e confunde o combate à discriminação com "políticas raciais"
inventadas por intelectuais
influenciados por idéias estrangeiras e políticos em
busca de votos. E ao se concentrar nas "falsas idéias" e
não no conteúdo efetivo das
práticas racistas, acaba por
associar essas lutas e essas
políticas à Ku Klux Klan, ao
apartheid e até ao nazismo,
disseminando um medo que
não sabemos bem de quê ou
de quem é. Talvez de uma experiência sociopolítica visando modificar o quadro geral de desigualdade e exclusão no qual vivemos.
MARCIO GOLDMAN é professor associado
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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