São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2008

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Fosse menos "puxador", Jamelão talvez não tivesse "morrido"

Morto sábado, aos 95, artista foi um dos maiores cantores populares do Brasil, formando no mesmo time de Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva

NEI LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cantor Jamelão não foi o maior intérprete das escolas de samba brasileiras. Muito mais do que isso, ele foi um dos maiores cantores populares do Brasil em todos os tempos, formando no mesmo time de Francisco Alves, Sílvio Caldas, Orlando Silva, Nelson Gonçalves etc. Por que, então, não obteve o mesmo sucesso de público alcançado por esses mitos da canção brasileira?
Fazemos essa pergunta tomando como base a idéia central de nosso livrinho "O Samba na Realidade...: A Utopia da Ascensão Social do Sambista" (Codecri, 1981). Nele, discutíamos o fato sócio-histórico segundo o qual as escolas de samba, criadas para legitimar a cultura de suas comunidades fundadoras, foram ilusoriamente acreditadas, em um certo momento, como canais de ascensão social por esses grupos. Devido a vários fatores, entretanto, a maioria de seus artistas viu frustrar-se essa possibilidade de prestígio e ascensão a partir da década de 1970.
Já cantor de gafieira nos anos 30, quando as escolas ensaiavam seus primeiros passos, Jamelão ingressou na Mangueira por mero prazer, como ritmista, e só passou a crooner cerca de 20 anos depois.
A partir daí, mais ou menos por duas décadas, sua porção de cantor romântico -interpretando com orquestra notadamente as principais obras de Lupicínio Rodrigues, mestre do samba-canção- conviveu sem problemas com a de crooner mangueirense na avenida.
Desde, entretanto, o momento em que as escolas de samba passaram a privilegiar o aspecto visual dos desfiles em detrimento da música, quase todos os artistas diretamente envolvidos com essa forma de expressão, mesmo os geniais, foram como que sugados pela areia movediça em que as escolas passaram a "evoluir". E Jamelão não foi exceção.
Este não foi o caso, por exemplo, da cantora Alcione, que associou belamente seu nome à Mangueira depois de uma carreira já consolidada e envolvendo-se mais nas questões sociais do que nas artísticas da agremiação. Nem o de Martinho da Vila, dono de uma trajetória invejável, mas que recentemente parece ter-se dado conta do que queremos demonstrar.
Mas foi o caso, sim, de Jamelão (cujo nome artístico já trazia implícita uma indelével carga racista), apesar de receber do Ministério da Cultura a medalha da Ordem do Mérito Cultural em 2001 e das homenagens que recebeu por ocasião de seu 90º aniversário.
No nosso entender, se fosse mais o intérprete genial de Lupicínio, Lúcio Cardim e Ary Barroso e menos o "puxador" de samba-enredo, o cantor Jamelão -que, além de cantar divinamente, escrevia e lia música como poucos- talvez não tivesse "morrido" para a indústria do disco na década de 1970.
Seria, no final de sua trajetória, mais admirado, endeusado e mitificado do que escarnecido por seus protestos ranzinzas e suas tiradas justificadamente mal-humoradas.


NEI LOPES é compositor e escritor, autor de "Partido Alto - Samba de Bamba", entre outros


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