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NELSON ASCHER
Você é virgem?
Quatro décadas após 1968, há indícios de uma contra-revolução sexual em andamento
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CONVIVAS ainda comemoravam as bodas quando, em outro recinto, os recém-casados
consumaram sua união. Pouco depois o noivo voltou ao salão para
anunciar que, ao contrário do que
dissera, a noiva não era virgem. Na
mesma noite, ela foi devolvida aos
pais.
Não, não se trata de uma cena de
"O Incrível Exército de Brancaleone" ou de outro filme qualquer ambientado na Idade Média. O episódio se desenrolou em Lille, cidade do
norte da França, dois anos atrás. Em
seguida, o noivo, um engenheiro na
casa dos 30, entrou com um recurso
para que o casamento com a moça,
uma estudante de enfermagem de
20 e poucos anos, fosse legalmente
anulado. A sentença, favorável a ele,
saiu recentemente, gerando certa
comoção no país.
Afinal, estamos a quatro décadas
de distância de 1968, data que parecia marcar uma revolução irreversível nos hábitos de acasalamento da
espécie. Convencionalmente, é a
partir dos anos 60 que as mulheres
teriam conquistado o direito de, como os homens, administrarem suas
vidas íntimas sem a interferência seja de autoridades seculares ou religiosas, seja até dos pais e das tradições repressivas.
É claro que as novas liberdades
não chegaram concomitantemente
a todos os cantos do planeta. No Brasil, por exemplo, fora de círculos restritos a artistas e intelectuais, elas só
começaram a se impor nos anos 70
-e mais cedo no Rio do que em São
Paulo. Quando as cariocas estavam
principiando sua vida erótica no segundo grau, as paulistanas ainda se
"guardavam" para depois do vestibular. Seja como for, esperava-se pelo menos que, num intervalo beirando meio século, tal revolução já tivesse triunfado na maior parte do
mundo.
E, em vez disso, o que vemos são
presságios de uma contra-revolução, inclusive nos próprios epicentros da revolta original, pois o caso
acima narrado não é um evento isolado. Os nubentes em questão eram
muçulmanos, se bem que, ao que tudo indica, bastante assimilados.
Ocorre que muitas jovens islâmicas
desfrutam a adolescência e primeira
juventude à maneira ocidental e, então, resolvem regressar à sua sociedade tradicionalista para desposar
bons rapazes muçulmanos que, no
entanto, pedem-lhes provas (não raro clínicas) de castidade.
Algumas moças, como a aluna de
enfermagem, arriscam-se e mentem. Outras, mais informadas ou
precavidas, recorrem cada vez mais,
por cerca de US$ 3.000, à himenoplastia, uma cirurgia de reconstituição do selo de garantia divino. Como
virgindade e hímen, porém, não são
sinônimos, um casamento cirurgicamente viabilizado continua a
ocultar uma mentira de base que pode ou não ser um dia descoberta.
O de Lille, aliás, foi anulado não
com desculpas de ordem religiosa,
mas por quebra de contrato. E se há
algo sagrado na civilização ocidental, é o respeito aos contratos. Qualquer cliente tem direito a reclamar
se lhe vendem gato por lebre. Independentemente do que feministas e
demais liberais pensem, o matrimônio é um contrato no qual se entra livremente, e não se pode obrigar um
homem (ou mulher) a se casar com
quem não queira ou em circunstâncias que não deseje. Se um sujeito
somente está disposto a desposar
virgens, é assunto dele e de ninguém
mais.
E aqui chegamos a um pequeno
paradoxo, ou melhor, entrechoque
de interesses. Se a uma mulher é dado dispor de seu corpo como bem
entender, o mesmo se aplica aos homens aos quais cabe, conforme prefiram, dar ou não uma parte dele, ou
seja, a mão, apenas a quem queiram.
E embora a sociedade possa apoiar
um ou o outro lado da querela, não
lhe é facultado interferir diretamente no que não passa de um conjunto
de decisões privadas de adultos.
O problema é que há mecanismos
mais complexos em operação. Não
haveria nada a discutir a respeito do
veredicto se um país como a França
e um continente como a Europa fizessem sua lei valer plenamente. Se
assim fosse, a noiva é que seria culpada de hipocrisia por querer se
comportar como uma ocidental liberada sem ter de romper com seu
meio conservador. O fato, contudo, é
que o establishment multicultural
europeu não se dispõe a defender de
retaliações (que chegam ao assassinato) as mulheres sequiosas de fugirem a um ambiente opressivo.
Acovardadas ou indiferentes, o
que as elites do Primeiro Mundo
têm feito, no entanto, é, cedendo à
pressão demográfica de massas
oriundas de sociedades tradicionalistas, tomar o partido nem sequer
de seus costumes pretensamente
"autênticos", mas, sim, de suas autoridades religiosas mais despóticas e
menos representativas. Nesse ritmo, a virgindade, ainda há pouco obsoleta, voltará a se tornar, primeiro, respeitável e, em breve, obrigatória.
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