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SHOW
Rapper desafia regras de TV durante primeira sessão de "Acústico"
Bêbado, D2 afronta caretice MTV
DA REPORTAGEM LOCAL
Você nunca verá nem ouvirá o
"Acústico MTV" de Marcelo D2,
ao menos não como ele foi gravado anteontem, em primeira sessão, em São Paulo. É que, de acordo com definições convencionais,
deu tudo errado.
O rapper carioca bebeu cerveja
sem parar, errou a letra na hora de
cantar "Loadeando" com seu filho Stephan, irritou-se com a ordem da MTV de repetir boa parte
das canções. Ao saber que devia
começar tudo de novo, fez cara de
desapontamento e correu para fazer xixi, dispersando o grupo de
músicos sambistas, rappers, violonistas MPB, até uma orquestra
de cordas que ia ficando embevecida com a rebeldia antipop do líder da gandaia. Sob o pretexto da
bebedeira, comandou um show
de sabotagem e auto-sabotagem.
O que estava em curso era um
legítimo embate roqueiro. A
MTV é ágil e moderna, mas tem
submetido artistas brasileiros
também ágeis e modernos ao formato disciplinado, careta, pseudo-sofisticado do sucesso comercial que é a grife "Acústico".
Mesmo sem querer, o indócil
D2 deu o troco à MTV. Reagiu ao
"quadradismo dos seus versos",
com diriam Antonio Carlos & Jocafi, que ele gosta de samplear. "É
mentira", cantavam as vocalistas,
citando o rebelde Marcos Valle.
D2 tem apenas dois discos solo.
Um deles é "À Procura da Batida
Perfeita" (2003), um dos mais importantes trabalhos musicais do
Brasil recente. O natural era que
seu sucessor fosse um disco de
volta do Planet Hemp, sua banda,
e não mais um solo feito de reprises em formato acústico. D2 aceitou fazê-lo, de comum acordo
com os conglomerados comerciais Sony Music e MTV. Mas na
hora H a receita desandou.
O desenho de palco era inovador; o público se dispunha em arquibancadas tipo teatro Oficina,
proibitivas para dança e movimento; playboys paulistanos presentes não tinham nada a ver com
o subúrbio colorido que dá razão
de ser ao Planet e a D2.
Pouco a pouco, ia ficando explícito o desinteresse manso do artista pelas novas versões de seus
samba-raps. Derrubou a caneca
de cerveja no chão em que dois
bailarinos de hip hop faziam evoluções comoventes de tão rebuscadas. Impacientou-se com o
ponto eletrônico que devia veicular broncas colossais -tirava-o
do ouvido, levava mais bronca.
Já embriagado, disse que a maconha estava liberada no recinto,
levando à ira uma das produtoras
frenéticas que se desesperavam
com o descontrole.
Obrigado a regravar (mesmo
sem condições), convocou de volta ao palco o gênio maluco do piano João Donato, que em cumplicidade com seu fã forjou uma genial improvisação estendida por
minutos incontáveis -tudo que
não caberia num programa de TV
cheio de regras e contra-regras.
Frases ébrias iam entregando o
ouro aos bandidos que gostam de
música nova e inventiva, não de
formatos engessados. "Eu sou do
Rio de Janeiro, pô." "Não sou daqueles caras que quer vender disco, não." "Isso é um programa de
TV, mas ninguém está aqui para
mostrar a bunda." "Sabia que não
podia ficar bebendo, porque fico
emocionado."
Foi triste? Foi. Bebida é porcaria
e faz mal a D2? Faz. Mas não era só
isso. Em seu descontrole, D2 cantava fora do microfone, pedia liberdade, desobedecia vozes castradoras de autoridade, como fez
a vida toda. Não quis se deixar domar pela caretice dos outros, esse
tem sido sempre seu jargão.
Se alguém tinha que se enquadrar ali era a MTV, não o artista
-nervoso, o povo da TV talvez
nem tenha percebido a linda roda
que se formou ao final, as vocalistas gentis sambando descalças para apoiar o líder rebelado. O conflito está posto à mesa, vivas à música e à arte do Brasil.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
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