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RODAPÉ
O livro como personagem de ficção
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Ao longo da história da literatura, os escritores nunca
deixaram de se espantar com o
efeito de suas narrativas sobre o
imaginário coletivo e sobre a imaginação dos leitores. A tal ponto
que, ao lado de heróis e anti-heróis, o livro acabou se transformando ele mesmo em personagem.
E é justamente o livro como
protagonista de narrativas e como
personagem da história cultural
que fornece para Luciano Canfora
o tema de "Livro e Liberdade",
um delicioso opúsculo publicado
em co-edição pela Ateliê e pela
Casa da Palavra dentro da coleção
Bibliomania (dedicada a "livros
que falam sobre livros").
Professor de filologia clássica na
Universidade de Bari (Itália),
Canfora mobiliza a erudição com
a maestria dos melhores ensaístas, imprimindo a suas reflexões,
cheias de minúcias bibliográficas,
um ritmo casual, errante, com o
sabor de uma conversa em que se
fala ao léu de livros e leituras.
Como não poderia deixar de
ser, o volume começa com o Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes
(1547-1616), personagem que melhor encarna os perigos e prazeres
que o livro introduz na vida real.
Luciano Canfora enfoca precisamente a sequência do romance
em que o padre e o barbeiro,
preocupados com a insanidade
do fidalgo, decidem, então, queimar os livros que o intoxicavam
de irrealidade, levando-o a uma
existência delirante.
Esse célebre episódio, que reproduz na narrativa a própria posição do leitor perante a matéria-prima ficcional, permite a Canfora fazer conexões inusitadas. Para
ele, "Dom Quixote" assinala uma
nova forma de nos relacionarmos
com os livros. O leitor de Cervantes, que é o leitor dos novos tempos, não lê para "robustecer sua
sabedoria", mas é compelido pelos livros a agir.
Canfora vê aí um precedente da
famosa frase de Marx: "Até aqui
os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, o importante
agora é mudá-lo" -mas essa ilação não deixa de ser irônica, pois
sugere o caráter quixotesco dessa
transformação de um mundo cuja visão foi deformada pela ideologia aprendida no livros de catecismo político.
O episódio de Cervantes leva
Canfora a muitas outras associações, entre as quais o belo "insight" que conecta Tolstói (1828-1910) ao Quixote.
Pois, se o "cavaleiro da triste figura" dá início a sua vida errante
quando sua biblioteca é queimada e emparedada, a biografia do
escritor russo foi uma fuga quixotesca às avessas: depois de escrever obras-primas como "A Morte
de Ivan Ilitch" ou "Ana Karênina", Tolstói renega a literatura e
abandona sua propriedade rural,
dando início à peregrinação que
culminaria em sua morte.
Os livros também aparecem
aqui como objetos arqueológicos
que nos permitem reconstituir o
passado ou corrigir os erros históricos.
Canfora nos lembra como os
volumes pertencentes às bibliotecas pessoais de grandes personalidades ajudaram, por exemplo, a
questionar a origem genovesa de
Colombo, a formular hipóteses
plausíveis sobre a verdadeira
identidade de Shakespeare ou a
refutar a idéia de que o modelo
dos jacobinos na Revolução Francesa eram os gregos (já que eles
estavam muito mal representados, por exemplo, no acervo de
Danton).
A envolvente erudição do ensaísta se faz presente sobretudo
nos inúmeros episódios envolvendo autores da Antiguidade
clássica, mas nessa celebração
também há espaço para os críticos da obsessão livresca, como no
capítulo em que ele mostra como
a bibliomania e a ostentação de
paredes ornadas de livros é um
hábito de "novos-ricos" que remonta à Roma da época do "Satyricon", de Petrônio.
Todavia, a imagem mais eloquente -e que justifica o título
do volume- é a das personagens
reais e ficcionais que, em resposta
às ameaças à liberdade de expressão e à queima de livros, decoraram obras inteiras, passando a viver como repositórios vivos das
palavras de escritores e pensadores (conforme podemos ler num
relato de Sêneca ou num romance
de ficção científica como "Farenheit 451", de Ray Bradbury). Esses homens-livros são, afinal, a
mais perfeita imagem dos homens livres.
Livro e Liberdade
Autor: Luciano Canfora
Editora: Ateliê/Casa da Palavra
Quanto: R$ 19 (104 págs.)
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