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São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2003

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RODAPÉ

O livro como personagem de ficção

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Ao longo da história da literatura, os escritores nunca deixaram de se espantar com o efeito de suas narrativas sobre o imaginário coletivo e sobre a imaginação dos leitores. A tal ponto que, ao lado de heróis e anti-heróis, o livro acabou se transformando ele mesmo em personagem.
E é justamente o livro como protagonista de narrativas e como personagem da história cultural que fornece para Luciano Canfora o tema de "Livro e Liberdade", um delicioso opúsculo publicado em co-edição pela Ateliê e pela Casa da Palavra dentro da coleção Bibliomania (dedicada a "livros que falam sobre livros").
Professor de filologia clássica na Universidade de Bari (Itália), Canfora mobiliza a erudição com a maestria dos melhores ensaístas, imprimindo a suas reflexões, cheias de minúcias bibliográficas, um ritmo casual, errante, com o sabor de uma conversa em que se fala ao léu de livros e leituras.
Como não poderia deixar de ser, o volume começa com o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), personagem que melhor encarna os perigos e prazeres que o livro introduz na vida real.
Luciano Canfora enfoca precisamente a sequência do romance em que o padre e o barbeiro, preocupados com a insanidade do fidalgo, decidem, então, queimar os livros que o intoxicavam de irrealidade, levando-o a uma existência delirante.
Esse célebre episódio, que reproduz na narrativa a própria posição do leitor perante a matéria-prima ficcional, permite a Canfora fazer conexões inusitadas. Para ele, "Dom Quixote" assinala uma nova forma de nos relacionarmos com os livros. O leitor de Cervantes, que é o leitor dos novos tempos, não lê para "robustecer sua sabedoria", mas é compelido pelos livros a agir.
Canfora vê aí um precedente da famosa frase de Marx: "Até aqui os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, o importante agora é mudá-lo" -mas essa ilação não deixa de ser irônica, pois sugere o caráter quixotesco dessa transformação de um mundo cuja visão foi deformada pela ideologia aprendida no livros de catecismo político.
O episódio de Cervantes leva Canfora a muitas outras associações, entre as quais o belo "insight" que conecta Tolstói (1828-1910) ao Quixote.
Pois, se o "cavaleiro da triste figura" dá início a sua vida errante quando sua biblioteca é queimada e emparedada, a biografia do escritor russo foi uma fuga quixotesca às avessas: depois de escrever obras-primas como "A Morte de Ivan Ilitch" ou "Ana Karênina", Tolstói renega a literatura e abandona sua propriedade rural, dando início à peregrinação que culminaria em sua morte.
Os livros também aparecem aqui como objetos arqueológicos que nos permitem reconstituir o passado ou corrigir os erros históricos.
Canfora nos lembra como os volumes pertencentes às bibliotecas pessoais de grandes personalidades ajudaram, por exemplo, a questionar a origem genovesa de Colombo, a formular hipóteses plausíveis sobre a verdadeira identidade de Shakespeare ou a refutar a idéia de que o modelo dos jacobinos na Revolução Francesa eram os gregos (já que eles estavam muito mal representados, por exemplo, no acervo de Danton).
A envolvente erudição do ensaísta se faz presente sobretudo nos inúmeros episódios envolvendo autores da Antiguidade clássica, mas nessa celebração também há espaço para os críticos da obsessão livresca, como no capítulo em que ele mostra como a bibliomania e a ostentação de paredes ornadas de livros é um hábito de "novos-ricos" que remonta à Roma da época do "Satyricon", de Petrônio.
Todavia, a imagem mais eloquente -e que justifica o título do volume- é a das personagens reais e ficcionais que, em resposta às ameaças à liberdade de expressão e à queima de livros, decoraram obras inteiras, passando a viver como repositórios vivos das palavras de escritores e pensadores (conforme podemos ler num relato de Sêneca ou num romance de ficção científica como "Farenheit 451", de Ray Bradbury). Esses homens-livros são, afinal, a mais perfeita imagem dos homens livres.


Livro e Liberdade
    
Autor: Luciano Canfora Editora: Ateliê/Casa da Palavra Quanto: R$ 19 (104 págs.)


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