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LIVRO/LANÇAMENTOS
"O COMPANHEIRO DE VIAGEM"
Krúdy combina realismo e fantasia em texto moderno finalmente traduzido no Brasil
Hilário antídoto húngaro corrói a hipocrisia
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
"O Companheiro de Viagem", do húngaro Gyula
Krúdy (1878-1933), é um texto excepcional. Embora tenha publicado mais de 60 novelas e romances
e seja considerado um dos maiores escritores do seu país, Krúdy
ainda é pouco conhecido fora da
Hungria. No Brasil, até hoje, o autor só tinha alguns dos seus contos traduzidos, graças à iniciativa
de Paulo Rónai.
A julgar por esta novela, entretanto, o autor é o oposto da homenagem que o compatriota Sándor
Márai (1900-1989) lhe presta em
forma de uma ficção escrita em
1940 -e que a Cosac & Naify incluiu a título de posfácio nesta
edição.
Sob o pretexto da homenagem,
reproduzindo o estilo do mestre,
o autor de "As Brasas" (Companhia das Letras) compõe uma
idealização rebuscada e nostálgica da pátria e da alma húngara,
uma exaltação metafórica e chauvinista que não parece condizer
com o Krúdy de "O Companheiro
de Viagem". São coisas do tipo:
"Escrevia porque via a primavera
e o verão que inundavam de espuma verde as paisagens húngaras,
derramavam sobre as praças de
Peste sua pompa lilás de aroma
sufocante...".
"O Companheiro de Viagem" é
o contrário disso. A metáfora aqui
tem um sentido dos mais ambíguos, criando um mundo irônico
e movediço, em que nunca se sabe
onde termina a simples descrição
e começam as imagens mais oníricas. E é o que faz dessa novela, já
nas primeiras linhas, um caso extraordinário.
Krúdy a escreveu em 1918, sem
fazer nenhuma menção aos acontecimentos históricos ou à destruição da Primeira Guerra. É um
texto estranho, extremamente
moderno, resultado de uma perturbadora combinação entre realismo e fantasia, que não se resolve na facilidade apaziguadora do
realismo mágico, mas mantém o
leitor em permanente suspensão.
Em momento algum, a ironia deixa o autor se perder no que à primeira vista podia parecer romantismo fácil, má poesia ou idealização patriótica. As superstições da
virgem tola, seduzida pelo protagonista, acabam por se revelar tão
ou mais realistas do que a visão
materialista do sedutor.
O protagonista é um Dom Juan
de província que encontra o narrador num trem e, a partir daí, lhe
conta durante uma viagem noturna a história das suas aventuras
amorosas.
Desde o início, os laços entre o
desejo e a morte se insinuam na
história desse estranho encontrado à noite num trem, cujas palavras ficam zumbindo em torno da
cabeça do narrador "como se a
morte lesse a Bíblia". Em seu relato, é o próprio sedutor, por exemplo, quem alerta uma virgem
prestes a ser seduzida de que ela
"se prepara para pisar na sombra
da morte".
Tudo é ao mesmo tempo estranho e prosaico, a começar pela
descrição das mulheres como fetiches. O fetiche é o ícone da incompreensão do desejo. Ao fazer
a enumeração dos objetos do seu
desejo, ao expor ao narrador e
companheiro de viagem as manifestações dos seus impulsos amorosos, a "fumaça do seu fogo interior", o sedutor tenta inutilmente
compreender o que lhe dá vida:
"Senhor, perdoe-me por entediá-lo tanto com a aparência dessa
mulher nunca vista. Desejo esclarecer fatos que, mesmo para mim,
ainda hoje são incompreensíveis", explica.
Motor da vida
De entediante, felizmente, a sua
narrativa não tem nada. Além de
ser o antídoto mais corrosivo e hilariante contra a hipocrisia de
uma sociedade que julga como
pecadores homens e mulheres
que apenas afirmam com seus
atos o motor da vida, a história da
sua atração pelas mulheres, contada como uma obstinação patética, o investe de grande simpatia.
Como o desejo, esta é a rigor uma
narrativa incompreensível. E o
protagonista, um homem feliz
quando passeia "despreocupado
pela feira, entra as saias das noivinhas" e que, na falta de uma resposta para as excitações da alma,
se contenta em contá-las com humor e imaginação.
O Companheiro de Viagem
Autor: Gyula Krúdy
Tradução: Paulo Schiller
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 33 (136 págs.)
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