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São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTOS

"O COMPANHEIRO DE VIAGEM"

Krúdy combina realismo e fantasia em texto moderno finalmente traduzido no Brasil

Hilário antídoto húngaro corrói a hipocrisia

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

"O Companheiro de Viagem", do húngaro Gyula Krúdy (1878-1933), é um texto excepcional. Embora tenha publicado mais de 60 novelas e romances e seja considerado um dos maiores escritores do seu país, Krúdy ainda é pouco conhecido fora da Hungria. No Brasil, até hoje, o autor só tinha alguns dos seus contos traduzidos, graças à iniciativa de Paulo Rónai.
A julgar por esta novela, entretanto, o autor é o oposto da homenagem que o compatriota Sándor Márai (1900-1989) lhe presta em forma de uma ficção escrita em 1940 -e que a Cosac & Naify incluiu a título de posfácio nesta edição.
Sob o pretexto da homenagem, reproduzindo o estilo do mestre, o autor de "As Brasas" (Companhia das Letras) compõe uma idealização rebuscada e nostálgica da pátria e da alma húngara, uma exaltação metafórica e chauvinista que não parece condizer com o Krúdy de "O Companheiro de Viagem". São coisas do tipo: "Escrevia porque via a primavera e o verão que inundavam de espuma verde as paisagens húngaras, derramavam sobre as praças de Peste sua pompa lilás de aroma sufocante...".
"O Companheiro de Viagem" é o contrário disso. A metáfora aqui tem um sentido dos mais ambíguos, criando um mundo irônico e movediço, em que nunca se sabe onde termina a simples descrição e começam as imagens mais oníricas. E é o que faz dessa novela, já nas primeiras linhas, um caso extraordinário.
Krúdy a escreveu em 1918, sem fazer nenhuma menção aos acontecimentos históricos ou à destruição da Primeira Guerra. É um texto estranho, extremamente moderno, resultado de uma perturbadora combinação entre realismo e fantasia, que não se resolve na facilidade apaziguadora do realismo mágico, mas mantém o leitor em permanente suspensão. Em momento algum, a ironia deixa o autor se perder no que à primeira vista podia parecer romantismo fácil, má poesia ou idealização patriótica. As superstições da virgem tola, seduzida pelo protagonista, acabam por se revelar tão ou mais realistas do que a visão materialista do sedutor.
O protagonista é um Dom Juan de província que encontra o narrador num trem e, a partir daí, lhe conta durante uma viagem noturna a história das suas aventuras amorosas.
Desde o início, os laços entre o desejo e a morte se insinuam na história desse estranho encontrado à noite num trem, cujas palavras ficam zumbindo em torno da cabeça do narrador "como se a morte lesse a Bíblia". Em seu relato, é o próprio sedutor, por exemplo, quem alerta uma virgem prestes a ser seduzida de que ela "se prepara para pisar na sombra da morte".
Tudo é ao mesmo tempo estranho e prosaico, a começar pela descrição das mulheres como fetiches. O fetiche é o ícone da incompreensão do desejo. Ao fazer a enumeração dos objetos do seu desejo, ao expor ao narrador e companheiro de viagem as manifestações dos seus impulsos amorosos, a "fumaça do seu fogo interior", o sedutor tenta inutilmente compreender o que lhe dá vida: "Senhor, perdoe-me por entediá-lo tanto com a aparência dessa mulher nunca vista. Desejo esclarecer fatos que, mesmo para mim, ainda hoje são incompreensíveis", explica.

Motor da vida
De entediante, felizmente, a sua narrativa não tem nada. Além de ser o antídoto mais corrosivo e hilariante contra a hipocrisia de uma sociedade que julga como pecadores homens e mulheres que apenas afirmam com seus atos o motor da vida, a história da sua atração pelas mulheres, contada como uma obstinação patética, o investe de grande simpatia. Como o desejo, esta é a rigor uma narrativa incompreensível. E o protagonista, um homem feliz quando passeia "despreocupado pela feira, entra as saias das noivinhas" e que, na falta de uma resposta para as excitações da alma, se contenta em contá-las com humor e imaginação.


O Companheiro de Viagem
    
Autor: Gyula Krúdy Tradução: Paulo Schiller Editora: Cosac & Naify Quanto: R$ 33 (136 págs.)



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