São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2008

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Crítica/"A Filha do Coveiro"

Romance expõe sutil jogo de ocultação

Neste último livro de Oates, acirradamente realista, o medo e a paranóia continuam agindo, às portas do século 21

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando indagado acerca da questão judaica em seu país, por causa de °seu romance "Complô contra a América", sobre uma imaginária aliança entre os Estados Unidos e a Alemanha nazista, o escritor Philip Roth respondeu que a questão hoje não existe, que o anti-semitismo fora ali um fenômeno localizado, preso ao passado. Ademais, sua família, que nunca fora perseguida, presa ou ameaçada, estaria no país havia mais de cem anos: "É muito tempo para qualquer família americana". Ao lermos este último e excelente romance de Joyce Carol Oates, temos outra impressão. Não importam quantos anos se passem, o medo e a paranóia continuariam agindo, às portas do século 21, pois haveria atos que "a história, a totalidade do "tempo", não é capaz de desfazer". Quando o personagem de Jacob clama que eles são "americanos como vocês", soa menos como Roth do que como Shylock, de Shakespeare, que receia que nunca o vejam como um semelhante. Jacob Schwart é um refugiado da Segunda Guerra. Veio com mulher e três filhos para uma pequena cidade do norte do Estado de Nova York. Fora professor de matemática na Alemanha, mas agora dá graças aos céus por trabalhar como coveiro no cemitério local. Afinal, não teriam de pagar aluguel pelo pequeno chalé onde passam a morar. Ele diz para a caçula, Rebecca: "Os fracos são facilmente descartados. Você tem de esconder a fraqueza". Como a filha nasceu quando o navio de refugiados chegava ao porto, Jacob acredita possa ser vista como os outros, que não iriam por isso "machucá-la". Será? A seu marido não-judeu, ela se vê forçada a dizer que é da mesma raça que ele, "da mesma porcaria de raça de todo mundo". E, quando ele lhe pergunta que raça seria aquela, a moça shylockianamente responde: "a raça humana". Seguindo o conselho do pai, Rebecca acaba por esconder toda a fraqueza: sua família, sua personalidade, seu nome. Rebecca, a designada por Deus, escolhe chamar-se Hazel Jones em sua nova vida em busca do sonho americano. Hazel - palavra em cujo corpo se oculta outra: "haze", ou "cerração", "neblina"- é também, como a personagem descobriria depois, o nome de uma morta. O sutil jogo de ocultação (também de cadáveres) e de exumação (até de fantasmas) que opera nas superfícies envernizadas dos espaços sociais americanos é o que garante a força deste romance acirradamente realista de Oates.

MARCELO PEN é professor de Teoria Literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

A FILHA DO COVEIRO
Autor: Joyce Carol Oates
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 67,90 (600 págs.)
Avaliação: ótimo



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