São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Ángel Rama, escritor


Rama pereniza a memória da mãe, dá-lhe consistência simbólica de trajetória exemplar

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

CONTRA O preconceito dos que, em tempos de especialização, desconfiam da obra criativa bissexta de grandes intelectuais, "Terra sem Mapa", romance do uruguaio Ángel Rama (1926-1983) que inaugura o catálogo da editora Grua, é uma boa vacina.
A figura pública de Rama se confunde com uma reflexão contínua sobre a (disputada) unidade da América Latina em sua literatura e cultura, militância exercida nas mais variadas frentes, da teoria literária, em que forjou conceitos influentes como o da "transculturação", às iniciativas editoriais. Coube a ele, por exemplo, a idealização, nos anos 1970, do projeto venezuelano da Biblioteca de Ayacucho, coleção de fôlego que venceu a barreira da centena de volumes, pensada para reunir os autores latino-americanos mais representativos.
"Terra sem Mapa" é um tributo à mãe do autor, Carolina Facal, imigrante galega como seu pai, e tem a história de sua gênese inscrita nos capítulos de abertura e fecho, "Entrada" e "Adeus", narrados em primeira pessoa por uma voz que se confunde com a dele.
Trata-se de uma reinvenção ficcional de relatos da infância da menina que foi a mãe, na Galícia do primeiro quartel do século 20, precipitada justamente pela notícia de sua morte que, por ironia, alcançou Rama no desembarque de sua primeira visita à Europa, em 1955.
Composto em quadros quase autônomos, o livro traz uma evocação viva do cotidiano de um vilarejo rural espanhol, a partir da ótica de Lina, órfã de pai e cheia de irmãs, numa casa pobre, só de mulheres. Atravessada por uma religiosidade santeira e supersticiosa, pelas vozes rumorejantes da província, sua descoberta do mundo alterna uma participação feliz no ritmo arcaico, imemorial, da vida livre no campo galego (com suas mulheres cobertas de preto, aparições e duendes amarrando rabos de vaca), com o aprendizado do mundo torto, em que cabem destinos individuais tolhidos por variadas formas de injustiça, estas muito presentes.
Ocupando-se de ilhas de lembranças descontínuas, mas de vocação totalizante, Rama pereniza a memória da mãe, dá-lhe consistência simbólica de trajetória exemplar, um pouco como, em outro registro, fez Modesto Carone, também crítico e escritor, em seu "Resumo de Ana".
O talento com que captura a euforia da menina junto às fogueiras de São João, seu horror ao ser tragada por um mar de sofrimento, numa romaria de moribundos e aleijões, o interesse pelas razões do coração e da economia que juntam e separam os casais, não deixam margem a dúvidas: o telhado do Rama ficcionista está longe de ser de vidro.

TERRA SEM MAPA
Autor: Ángel Rama
Tradutor: Roseli Barros Cunha
Editora: Grua
Quanto: R$ 32 (160 págs.)
Avaliação: bom



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