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"Ela sofreu, está abalada, mas teve sorte"
Imagem de barro de Nossa Senhora das Mercês saiu da enchente com rosto e partes do escapulário intactos
Reconstrução da santa começou na semana passada em Paraitinga, onde outras estátuas são recuperadas
Fotos Joel Silva/Folhapress
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Fragmentos da imagem de Nossa Senhora das Mercês (no detalhe, antes da enchente que atingiu São Luiz do Paraitinga), que agora passa por restauro
DO ENVIADO A SÃO
LUIZ DO PARAITINGA (SP)
"Ela sofreu, está suja, com
a estrutura abalada, mas teve
sorte", diz o restaurador João
Dannemann, solene, como
se respeitasse o descanso de
um doente. "Já está passando por seu processo de cura."
Sentado num banquinho
diante dos restos esfacelados
da Nossa Senhora das Mercês, Dannemann, um dos
maiores especialistas em
imagens de terracota no país,
não disfarça a preocupação.
Sabe que mesmo tendo encontrado o rosto e os braços
da santa quase intactos, vai
ser dura a reconstrução do
resto de seu manto vermelho
e todo o tronco da imagem.
Também está em bom estado, quebrado em três partes quase iguais, o escapulário volumoso que cobre o
ventre da estátua -detalhe
que levou aos boatos de que
fosse uma santa grávida.
Danneman sai em defesa
de sua reputação. "Nossa Senhora das Mercês nunca engravidou, mas o fiel olha e
enxerga o que quer ver", afirma. "Ela tem uma forma
meio gordinha por causa do
escapulário, mas na iconografia não tem nada a ver."
No lugar do rebento da discórdia, a barriga de Nossa Senhora das Mercês trazia um
desafio um tanto mais complexo para os restauradores.
Está cheia de um barro fragilíssimo. Em vez de oca, como costumam ser as imagens
de terracota, a santa foi feita
maciça e assada num forno
há pelo menos 200 anos, no
século 19 ou final do 18.
Não chegou ao ponto final
do cozimento e suas entranhas encharcadas na enchente viraram uma espécie
de lama dura, no mesmo tom
do barro dos escombros.
Muitos dos fragmentos da
imagem acabaram se misturando aos restos da capela.
Partes que perderam a cor
devem ser descartadas e refeitas no restauro, que começa com injeções de resina na
barriga erodida da santa.
"A gente tem como ajudar", diz Dannemann, passando a mão nos cacos da
imagem. "É tentar levar isso
da melhor forma possível."
No caso, é deixar como era
a Nossa Senhora das Mercês
antes dos traumas do dilúvio.
"Quando é uma peça de devoção, a gente tenta reconstruir", explica o restaurador.
"Fiéis não aceitam o ícone
quando está faltando um pedaço, é como alguém que fica
desfigurado num acidente."
Mais ou menos esbelta,
Nossa Senhora das Mercês
deve voltar à forma com o
rosto intacto. Perda total só o
querubim que ficava a seus
pés. Seu rosto sumiu na chuva e sobraram só as asas.
"Não perco a esperança de
achar o rostinho dele", diz
Dannemann. "Mas pode ser
o caso de admitir a perda
mesmo, de não reconstruir."
SANTOS DE PAU OCO
Enquanto parte da santa
de barro arrisca virar pó, as
imagens de madeira sofreram menos. Pedaços que faltavam, como a mão de são
Brás e o cinto de Santo Antônio, ressurgiram inteiros,
com lesões mais leves.
"Estava aqui quando encontraram o santo Antônio e
o são Brás", lembra Carla Melo, restauradora que tenta
devolver as cores à face desbotada de Nossa Senhora das
Dores. "Cada peça que encontravam era uma festa."
Feitas em blocos separados de madeira, às vezes oca,
e depois remendados, são
imagens bem mais resistentes que agora passam por tratamento para voltar ao altar.
São Brás teve alguns dedos refeitos e o nariz vai passar por uma pequena plástica. Numa mesa, outros restos
de santo, asas, orelhas, dedos e mantos, estão etiquetados com o nome do dono.
Testemunhas do dilúvio e
da ressurreição, nenhum
olho de vidro se perdeu. Caíram, mas já voltaram para
suas cavidades de madeira.
(SILAS MARTÍ)
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