São Paulo, segunda-feira, 16 de agosto de 2010

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"Ela sofreu, está abalada, mas teve sorte"

Imagem de barro de Nossa Senhora das Mercês saiu da enchente com rosto e partes do escapulário intactos

Reconstrução da santa começou na semana passada em Paraitinga, onde outras estátuas são recuperadas

Fotos Joel Silva/Folhapress
Fragmentos da imagem de Nossa Senhora das Mercês (no detalhe, antes da enchente que atingiu São Luiz do Paraitinga), que agora passa por restauro

DO ENVIADO A SÃO LUIZ DO PARAITINGA (SP)

"Ela sofreu, está suja, com a estrutura abalada, mas teve sorte", diz o restaurador João Dannemann, solene, como se respeitasse o descanso de um doente. "Já está passando por seu processo de cura."
Sentado num banquinho diante dos restos esfacelados da Nossa Senhora das Mercês, Dannemann, um dos maiores especialistas em imagens de terracota no país, não disfarça a preocupação.
Sabe que mesmo tendo encontrado o rosto e os braços da santa quase intactos, vai ser dura a reconstrução do resto de seu manto vermelho e todo o tronco da imagem.
Também está em bom estado, quebrado em três partes quase iguais, o escapulário volumoso que cobre o ventre da estátua -detalhe que levou aos boatos de que fosse uma santa grávida.
Danneman sai em defesa de sua reputação. "Nossa Senhora das Mercês nunca engravidou, mas o fiel olha e enxerga o que quer ver", afirma. "Ela tem uma forma meio gordinha por causa do escapulário, mas na iconografia não tem nada a ver."
No lugar do rebento da discórdia, a barriga de Nossa Senhora das Mercês trazia um desafio um tanto mais complexo para os restauradores.
Está cheia de um barro fragilíssimo. Em vez de oca, como costumam ser as imagens de terracota, a santa foi feita maciça e assada num forno há pelo menos 200 anos, no século 19 ou final do 18.
Não chegou ao ponto final do cozimento e suas entranhas encharcadas na enchente viraram uma espécie de lama dura, no mesmo tom do barro dos escombros.
Muitos dos fragmentos da imagem acabaram se misturando aos restos da capela. Partes que perderam a cor devem ser descartadas e refeitas no restauro, que começa com injeções de resina na barriga erodida da santa.
"A gente tem como ajudar", diz Dannemann, passando a mão nos cacos da imagem. "É tentar levar isso da melhor forma possível."
No caso, é deixar como era a Nossa Senhora das Mercês antes dos traumas do dilúvio. "Quando é uma peça de devoção, a gente tenta reconstruir", explica o restaurador. "Fiéis não aceitam o ícone quando está faltando um pedaço, é como alguém que fica desfigurado num acidente."
Mais ou menos esbelta, Nossa Senhora das Mercês deve voltar à forma com o rosto intacto. Perda total só o querubim que ficava a seus pés. Seu rosto sumiu na chuva e sobraram só as asas.
"Não perco a esperança de achar o rostinho dele", diz Dannemann. "Mas pode ser o caso de admitir a perda mesmo, de não reconstruir."

SANTOS DE PAU OCO
Enquanto parte da santa de barro arrisca virar pó, as imagens de madeira sofreram menos. Pedaços que faltavam, como a mão de são Brás e o cinto de Santo Antônio, ressurgiram inteiros, com lesões mais leves.
"Estava aqui quando encontraram o santo Antônio e o são Brás", lembra Carla Melo, restauradora que tenta devolver as cores à face desbotada de Nossa Senhora das Dores. "Cada peça que encontravam era uma festa."
Feitas em blocos separados de madeira, às vezes oca, e depois remendados, são imagens bem mais resistentes que agora passam por tratamento para voltar ao altar.
São Brás teve alguns dedos refeitos e o nariz vai passar por uma pequena plástica. Numa mesa, outros restos de santo, asas, orelhas, dedos e mantos, estão etiquetados com o nome do dono.
Testemunhas do dilúvio e da ressurreição, nenhum olho de vidro se perdeu. Caíram, mas já voltaram para suas cavidades de madeira.
(SILAS MARTÍ)


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