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RESENHA DA SEMANA
Simba safári humano
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O humor de George Saunders, 41, um dos mais engraçados expoentes da nova literatura americana, tem a ver com
o prazer infantil de imaginar os
piores horrores. É um humor
escatológico nos dois sentidos
do termo: o fim do mundo, e da
maneira mais imunda.
Num dos contos de "Pastoralia", sua segunda coletânea recém-publicada nos Estados
Unidos, os personagens submetidos ao cotidiano mais abjeto
assistem a um programa de televisão chamado "A Pior Coisa
Que Poderia Acontecer", como
se já não estivessem satisfeitos
com as próprias vidas.
O programa simula, por meio
de imagens de computador, tragédias que, embora virtuais, poderiam teoricamente acontecer:
"Um garoto é atropelado por
um trem e lançado para dentro
de um jardim zoológico, onde é
devorado por lobos. Um homem decepa a própria mão cortando madeira e, enquanto vaga
a esmo urrando por socorro, é
carregado por um tornado e jogado num jardim de infância,
durante o recreio, aterrissando
sobre uma professora grávida".
A graça dos textos de Saunders vem desse princípio tão comum entre crianças de imaginar
a coisa mais nojenta, o pior desastre, o horror mais horrível, levando a desgraça às últimas
consequências, para vencer pelo
riso do exagero a depressão e a
miséria.
Esse "realismo grotesco", resultado do confronto entre a
perversão do imaginário infantil
e as vidas tristíssimas de adultos
desiludidos e fracassados, produz um mundo de pesadelo onde a fantasia se concretiza em situações desatinadamente hilariantes. E é o realismo implausível dessas situações teoricamente plausíveis que faz rir.
Saunders vem de um meio
sem cultura e de uma família de
classe média baixa. Quando jovem, trabalhou num matadouro. Formou-se em engenharia
geofísica, especializando-se em
análises sísmicas para a prospecção de petróleo. Passou dois
anos em Sumatra, na Indonésia.
Uma vez, ao longo de uma reunião da empresa, explodiu numa gargalhada ao conceber em
silêncio a situação de uma de
suas histórias. É um autodidata
da literatura. Hoje dá aulas de
criação literária na universidade
de Siracusa, no Estado de Nova
York.
Ao começar um conto de
Saunders, o leitor pode ter a impressão de que está lendo sobre
Marte. Até a imagem ganhar foco, o absurdo ser reconhecido
em seus contornos de realidade,
e o leitor perceber que a história
se passa na América profunda,
entre pastores evangélicos,
charlatães, terapias de auto-estima, "strippers" para senhoras,
aleijões, cadáveres putrefatos,
gente sexualmente frustrada,
miserável e ignorante.
O conto que dá título ao volume começa com um homem reclamando de não estar no melhor dos seus dias, incomodado
com a mulher com quem tem de
conviver e que insiste em lhe falar em inglês, quando, pelas regras, deveria apenas grunhir e se
comunicar por gestos.
Aos poucos, fica claro que os
dois não formam um casal de
verdade e que não há metáfora
nas queixas do homem em relação ao comportamento da mulher: são empregados de um
parque temático cujo tema é a
Idade da Pedra. Ganham (mal e
porcamente) para representar,
durante 24 horas por dia, o cotidiano de um homem e uma mulher das cavernas.
A função dos dois é entreter os
visitantes que, quando aparecem com suas famílias, os humilham com seus comentários obtusos, como se fossem animais
numa jaula de zoológico ou a
maior atração de um simba safári humano.
As primeiras imagens dos
contos de Saunders são perturbadoras por fazer uma espécie
de deslocamento da ótica. Desfocam as situações até o grotesco e obrigam o leitor a um ajuste
de vista que o levará a ver, por
fim, como que pela primeira vez
na vida e às gargalhadas, o que
há de mais real e terrível nessa
realidade tão besta. São personagens que se submetem ao trabalho mais absurdo, vil e sem
sentido, para poder sobreviver e
manter suas famílias, ainda que
no limite da depressão e do humano: "the freaking American
way".
Pastoralia
Autor: George Saunders
Editora: Riverhead Books
Quanto: US$ 22,95 (190 págs.)
Onde encomendar: www.bn.com,
www.amazon.com
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