São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
Simba safári humano

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O humor de George Saunders, 41, um dos mais engraçados expoentes da nova literatura americana, tem a ver com o prazer infantil de imaginar os piores horrores. É um humor escatológico nos dois sentidos do termo: o fim do mundo, e da maneira mais imunda.
Num dos contos de "Pastoralia", sua segunda coletânea recém-publicada nos Estados Unidos, os personagens submetidos ao cotidiano mais abjeto assistem a um programa de televisão chamado "A Pior Coisa Que Poderia Acontecer", como se já não estivessem satisfeitos com as próprias vidas.
O programa simula, por meio de imagens de computador, tragédias que, embora virtuais, poderiam teoricamente acontecer: "Um garoto é atropelado por um trem e lançado para dentro de um jardim zoológico, onde é devorado por lobos. Um homem decepa a própria mão cortando madeira e, enquanto vaga a esmo urrando por socorro, é carregado por um tornado e jogado num jardim de infância, durante o recreio, aterrissando sobre uma professora grávida".
A graça dos textos de Saunders vem desse princípio tão comum entre crianças de imaginar a coisa mais nojenta, o pior desastre, o horror mais horrível, levando a desgraça às últimas consequências, para vencer pelo riso do exagero a depressão e a miséria.
Esse "realismo grotesco", resultado do confronto entre a perversão do imaginário infantil e as vidas tristíssimas de adultos desiludidos e fracassados, produz um mundo de pesadelo onde a fantasia se concretiza em situações desatinadamente hilariantes. E é o realismo implausível dessas situações teoricamente plausíveis que faz rir.
Saunders vem de um meio sem cultura e de uma família de classe média baixa. Quando jovem, trabalhou num matadouro. Formou-se em engenharia geofísica, especializando-se em análises sísmicas para a prospecção de petróleo. Passou dois anos em Sumatra, na Indonésia. Uma vez, ao longo de uma reunião da empresa, explodiu numa gargalhada ao conceber em silêncio a situação de uma de suas histórias. É um autodidata da literatura. Hoje dá aulas de criação literária na universidade de Siracusa, no Estado de Nova York.
Ao começar um conto de Saunders, o leitor pode ter a impressão de que está lendo sobre Marte. Até a imagem ganhar foco, o absurdo ser reconhecido em seus contornos de realidade, e o leitor perceber que a história se passa na América profunda, entre pastores evangélicos, charlatães, terapias de auto-estima, "strippers" para senhoras, aleijões, cadáveres putrefatos, gente sexualmente frustrada, miserável e ignorante.
O conto que dá título ao volume começa com um homem reclamando de não estar no melhor dos seus dias, incomodado com a mulher com quem tem de conviver e que insiste em lhe falar em inglês, quando, pelas regras, deveria apenas grunhir e se comunicar por gestos.
Aos poucos, fica claro que os dois não formam um casal de verdade e que não há metáfora nas queixas do homem em relação ao comportamento da mulher: são empregados de um parque temático cujo tema é a Idade da Pedra. Ganham (mal e porcamente) para representar, durante 24 horas por dia, o cotidiano de um homem e uma mulher das cavernas.
A função dos dois é entreter os visitantes que, quando aparecem com suas famílias, os humilham com seus comentários obtusos, como se fossem animais numa jaula de zoológico ou a maior atração de um simba safári humano.
As primeiras imagens dos contos de Saunders são perturbadoras por fazer uma espécie de deslocamento da ótica. Desfocam as situações até o grotesco e obrigam o leitor a um ajuste de vista que o levará a ver, por fim, como que pela primeira vez na vida e às gargalhadas, o que há de mais real e terrível nessa realidade tão besta. São personagens que se submetem ao trabalho mais absurdo, vil e sem sentido, para poder sobreviver e manter suas famílias, ainda que no limite da depressão e do humano: "the freaking American way".


Pastoralia      Autor: George Saunders Editora: Riverhead Books Quanto: US$ 22,95 (190 págs.) Onde encomendar: www.bn.com, www.amazon.com




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