São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS/LANÇAMENTOS

Jorge Cardoso, João Filho e Nilo Oliveira estréiam com obras agressivas e de temática bizarra

Autores oferecem remédio e veneno num mesmo gole

LUCIANA ARAUJO
DA REDAÇÃO

Remédio e veneno num mesmo gole. Assim, como o "phármakon" de Platão, a narrativa tarja preta e sem bula dos novos autores Jorge Cardoso, João Filho e Nilo Oliveira parece conter ao mesmo tempo o "bem" - uma anunciada contribuição singular à prosa brasileira- e o "mal" -uma temática doentia, retrato do dilacerado e do grotesco. Efeito colateral: estréias de impacto.
Lançados neste ano pela editora Baleia, que acaba de completar um ano, "Mal pela Raiz" (121 págs.; R$ 25), livro de contos de Jorge Cardoso, "Encarniçado" (148 págs.; R$ 25), novela de João Filho, e "Pornografia Pessoal" (111 págs.; R$ 25), também de contos, de Nilo Oliveira, foram publicados "pelo risco que, cada um a seu modo, pode representar", segundo o editor Nelson Provazi, 27.
"Escolhi publicar o Jorge porque ele corria o risco de não ser visto como escritor. Na seqüência, veio o João, que se arrisca na linguagem ao desafiar o leitor a cada linha. Agora, o Nilo, que deixa dúvida se aquilo que ele conta é pessoal ou não", diz Provazi, numa análise de sua seleção, que tem sido recebida com muito entusiasmo por outros autores.

Visões do fim do mundo
"A prosa desses três é demolidora", afirma o escritor Nelson de Oliveira. Bastante criticado pelas tentativas de mapear uma certa geração 90 e já cansado do assunto, ele evita rotular os estreantes, mas identifica no trabalho do trio "um fio que os reúne e amarra: o bizarro".
"A conformação urbana das narrativas desses três cavaleiros do Apocalipse já não é suficiente para caracterizá-los. Hoje o embate literário se dá entre o modo bizarro e o modo lírico de enxergar a realidade", avalia Oliveira.
Que realidade? Do outro lado da linha, no norte da Suécia, em entrevista à Folha, o carioca Jorge Cardoso, 32, avisa: "Não se assuste se começar a ouvir um barulho estranho", pois sua vizinha, uma velhinha de 70 anos, costuma bater com a cabeça na parede até desmaiar. "Por aqui a solidão é muito bem tratada. Os velhinhos são abandonados. A correspondência começa a acumular... Até que alguém abre a porta e encontra uma caveira", exemplifica.
Cardoso deixou a faculdade de filosofia e o Brasil em 94. "Um dia fui tomado pela certeza de que iria morrer. Não queria morrer perto dos meus pais, então parti", conta sobre sua viagem ao Marrocos, seguida de outras a países como os Estados Unidos e a Islândia. Agora, na pequena Umeä, próxima à Lapônia, onde mora há cinco anos e passa semana sim, semana não ao lado de seu filho Noah (Noé), de quatro anos, ele diz começar a perceber a importância de criar raízes. "Mas não sei para onde vou. Agora eu sou um bicho na arca dele."
"Vigia do inferno", assim Cardoso define sua função no hospício de Norrlands Universitetssjukhusem, onde trabalha no turno da noite desde julho do ano passado. "Eu fico no quarto de um maluco e preciso controlar a cabeça dele. No meu primeiro dia de trabalho um menino queria se jogar pela janela. Não dormi à noite. Depois me habituei..."
Apesar de uma vida repleta de episódios que dariam um livro, diz não buscar nessa realidade o conteúdo de sua arte. Segundo Cardoso, seus textos abarcam tudo o que um dia o amedrontou e agora é gerador de um certo prazer. "Procuro cheirar o medo, torná-lo físico, porque é através dele que o homem encontra Deus."
Católico, o escritor diz que sua literatura tem grande débito com a Bíblia. "Um dia minha mãe me disse: "Este livro salva"." Tudo isso pode parecer contraditório (e até é), numa primeira leitura dos contos do autor, que transbordam crimes e são libertos de qualquer trava moral. No entanto, há na argumentação do escritor um discurso muito mais literário do que religioso. Como se esse livro que salva fosse a própria literatura, e ele, um personagem de si.
"Acredito que Deus cresce com a gente. No Velho Testamento, Ele estava na adolescência, por isso toda aquela ira. Assim é "Mal pela Raiz". Depois vem a mensagem de Jesus, no Novo Testamento. Pretendo escrever um livro só sobre o amor."
Se de um lado todas essas histórias fazem com que alguns duvidem da existência do escritor, por outro têm efeitos literários. "Jorge Cardoso tem, como outros escritores que admiro -Bukowksi, Henry Miller e Hemingway-, uma mitologia pessoal bastante fascinante", destaca o dramaturgo Mário Bortolotto. "Seus textos parecem roteiros cinematográficos, que Abel Ferrara adoraria filmar, se os conhecesse. São recheados com suas obsessões religiosas e seu jeito cru e, ao mesmo tempo, por incrível que possa parecer, terno, de ver o mundo. "Mal pela Raiz" é um clássico. Já nasceu assim", opina Bortolotto.

O avesso do outro
O baiano de Bom Jesus da Lapa João Filho, 29, ao contrário de Cardoso, pouco saiu de sua terra. Morou por pouco tempo em Salvador e em Recife. Também não tem religião e não cursa faculdade. É autodidata.
As histórias e os personagens reais da cidade do autor são virados ao avesso em "Encarniçado". "É como se diz: "Onde a fé se instala, a devassidão campeia'", brinca Filho. Segundo ele, sua novela é praticamente toda baseada em fatos e pessoas reais.
O personagem central que atravessa a narrativa matando personagens vaga por ali. "Convivi com todas essas figuras ou estive muito perto delas." Mas não se engane. "Encarniçado" possui um caráter autobiográfico, mas isso pode passar despercebido, tamanha ficcionalização da linguagem e dos efeitos visual e musical.
"A escrita do João é endemoniada", define o escritor Sérgio Sant'Anna. "É muito agressiva, além do design novo que possui sua linguagem. O texto revela o quanto ele leu e não está acomodado diante da língua", conclui.
Para o escritor Sebastião Nunes, o autor é uma "mistura de marquês de Sade com Guimarães Rosa, mas não é. É algo paralelo a isso, muito original. É fácil definir uma obra quando há uma referência óbvia. Sem dúvida este não é o caso de "Encarniçado'", diz.

Escrita em eixo
Nilo Oliveira, 32, gaúcho, que mora em Florianópolis e lançou na última quarta seu livro "Pornografia Pessoal", em São Paulo, dá aulas de psicologia forense. Mas diz ter abandonado a psicanálise para ser escritor. "A psicologia só me mostrou o que eu não queria ser. A literatura me dá a possibilidade de me inserir no mundo", destaca.
O encontro com o escritor Marcelo Mirisola foi o incentivo que faltava para Nilo Oliveira mergulhar de cabeça na literatura. "Conheci o Nilo num congresso de psicanálise. Eu estava lá para vender o livro "Fátima Fez os Pés". Um amigo do Nilo comprou um. Depois saímos para beber", conta Mirisola, que desde então manteve contato e é o autor do prefácio do livro do colega estreante.
Enquanto João Filho se apega à realidade para criar, Nilo Oliveira a nega. "Se sou da classe média, vou buscar a pobreza nos textos." Outro objetivo é provocar angústia. "O texto precisa fazer o leitor produzir, precisa tirá-lo do chão ou, como faz Dostoiévski, enterrá-lo num chão de palavras", conclui o escritor gaúcho.


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: "O Emblema da Amizade": Filósofo vira detetive em policial didático
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.