São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O EMBLEMA DA AMIZADE"

Giordano Bruno protagoniza livro em que Jacques Bonnet mistura erudição e literatura

Filósofo vira detetive em policial didático

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Foi-se o tempo em que literatura policial passava por ser um gênero vulgar, "de massa". Provavelmente, trata-se da principal modalidade de ficção a que os intelectuais se permitem hoje em dia. Natural que seja assim: a atividade do filósofo, do psicanalista ou do professor de história têm pontos em comum com a do detetive, e certamente o gosto pela investigação exata da verdade (sem contar certa dose de soberba quanto às próprias habilidades intelectuais) convida o leitor de perfil mais acadêmico a especializar-se no gênero.
É assim que as histórias policiais vão se tornando cada vez mais cheias de erudição, a partir do conhecido exemplo de Umberto Eco em "O Nome da Rosa".
Explicações sobre pintura flamenga, filosofia grega, sexualidade adolescente na Polinésia ou mumificação pré-colombiana não podem faltar a esse tipo de entretenimento.
Em "O Emblema da Amizade", de Jacques Bonnet, temos discussões sobre as guerras entre católicos e huguenotes na França dos Valois, comentários sobre a teoria do direito renascentista e o cotidiano dos livreiros e ourives na Paris de 1582. Ninguém menos do que o filósofo Giordano Bruno (1548-1600) é o detetive deste curto romance policial, com o jovem estudante Jean Hennecquin desempenhando a clássica função de narrador ao estilo de Watson.
Pensador inquieto, herético, pugnaz, Giordano Bruno enfrenta a perseguição das autoridades em vários cantos da Europa (terminaria condenado à fogueira pela santa Inquisição). Beneficia-se, em Paris, do breve período de tolerância e acomodação religiosa promovida pelo rei Henrique 3º.
A trama de mistério em que irá se envolver não é das mais substanciosas. Um livreiro é assassinado com toda a sua família; nem mesmo um bebê escapa do massacre. Seguindo a velha escola de Ellery Queen, o próprio assassino se encarrega de deixar pistas para a resolução do mistério. Escreve uma frase em italiano na parede, copia em pergaminho um trecho de Dante Alighieri e ainda por cima esgana um pobre corvo.
A tarefa em que se empenha o detetive consiste menos em conhecer os suspeitos -bem poucos, aliás, neste romance- do que deslindar o que foi criptografado na cena do crime. Giordano Bruno participa das investigações, rivalizando com o inspetor Dagron, que corresponde ao papel clássico do chefe de polícia sempre a um passo de prender algum inocente não fosse a clarividência do detetive autônomo.
Ocorre que Giordano Bruno não é tão clarividente assim no livro de Jacques Bonnet, talvez porque esteja excessivamente ocupado em expor suas próprias idéias ao leitor -que também será confrontado com esclarecimentos históricos de diversa natureza à medida que a ocasião seja propícia. Tudo isso confere certa rigidez à narrativa e prejudica, como aliás é comum em romances históricos, qualquer verossimilhança no diálogo.
Trata-se de livro de historiador, mais do que de romancista, e as sentenças de Bruno -sobre o fanatismo religioso, o papel da Justiça ou os limites da própria filosofia-, embora merecedoras de admiração pelo que têm de atual e razoável, parecem feitas de colagens textuais, intervindo de modo forçado nos diálogos.
Tanto didatismo expositivo tende a ser comum nos romances que mobilizam personagens históricos reais. Sem dúvida, sua origem está no fato de que a literatura moderna abandonou a figura do narrador onisciente, característica de épocas mais "objetivistas" e autoconfiantes. Tal figura faz falta em romances que, a meio caminho entre a erudição e o entretenimento, precisam transmitir ao leitor leigo todo o contexto da ação. O diálogo entre personagens não substitui a contento esse narrador.
Curiosamente, a fluência autoral é maior na introdução autobiográfica de "O Emblema da Amizade", onde ficamos conhecendo as circunstâncias que levaram Bonnet a tratar de Giordano Bruno. Uma tênue rede de relações pessoais e bibliográficas adquire intensidade e paixão em poucas páginas. Não é a única passagem do livro em que erudição e literatura se combinam: as descrições do cotidiano parisiense, da própria geografia da cidade no século 16, também oferecem um foco autônomo de interesse. O leitor atual de histórias policiais, simultaneamente atento e disperso, apressado quanto à trama, mas sequioso de informações de todo tipo, achará afinal com que se entreter.


O Emblema da Amizade
   
Autor: Jacques Bonnet
Tradutor: Paulo Neves
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 25 (143 págs.)



Texto Anterior: Livros/Lançamentos: Autores oferecem remédio e veneno num mesmo gole
Próximo Texto: "Chefes e Poetas - O Teatro de Luiz Carlos Cardoso": Autor exalta maniqueísmo escrachado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.