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"O EMBLEMA DA AMIZADE"
Giordano Bruno protagoniza livro em que Jacques Bonnet mistura erudição e literatura
Filósofo vira detetive em policial didático
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Foi-se o tempo em que literatura policial passava por ser
um gênero vulgar, "de massa".
Provavelmente, trata-se da principal modalidade de ficção a que
os intelectuais se permitem hoje
em dia. Natural que seja assim: a
atividade do filósofo, do psicanalista ou do professor de história
têm pontos em comum com a do
detetive, e certamente o gosto pela
investigação exata da verdade
(sem contar certa dose de soberba
quanto às próprias habilidades
intelectuais) convida o leitor de
perfil mais acadêmico a especializar-se no gênero.
É assim que as histórias policiais
vão se tornando cada vez mais
cheias de erudição, a partir do conhecido exemplo de Umberto
Eco em "O Nome da Rosa".
Explicações sobre pintura flamenga, filosofia grega, sexualidade adolescente na Polinésia ou
mumificação pré-colombiana
não podem faltar a esse tipo de
entretenimento.
Em "O Emblema da Amizade",
de Jacques Bonnet, temos discussões sobre as guerras entre católicos e huguenotes na França dos
Valois, comentários sobre a teoria
do direito renascentista e o cotidiano dos livreiros e ourives na
Paris de 1582. Ninguém menos do
que o filósofo Giordano Bruno
(1548-1600) é o detetive deste curto romance policial, com o jovem
estudante Jean Hennecquin desempenhando a clássica função
de narrador ao estilo de Watson.
Pensador inquieto, herético,
pugnaz, Giordano Bruno enfrenta
a perseguição das autoridades em
vários cantos da Europa (terminaria condenado à fogueira pela
santa Inquisição). Beneficia-se,
em Paris, do breve período de tolerância e acomodação religiosa
promovida pelo rei Henrique 3º.
A trama de mistério em que irá
se envolver não é das mais substanciosas. Um livreiro é assassinado com toda a sua família; nem
mesmo um bebê escapa do massacre. Seguindo a velha escola de
Ellery Queen, o próprio assassino
se encarrega de deixar pistas para
a resolução do mistério. Escreve
uma frase em italiano na parede,
copia em pergaminho um trecho
de Dante Alighieri e ainda por cima esgana um pobre corvo.
A tarefa em que se empenha o
detetive consiste menos em conhecer os suspeitos -bem poucos, aliás, neste romance- do
que deslindar o que foi criptografado na cena do crime. Giordano
Bruno participa das investigações, rivalizando com o inspetor
Dagron, que corresponde ao papel clássico do chefe de polícia
sempre a um passo de prender algum inocente não fosse a clarividência do detetive autônomo.
Ocorre que Giordano Bruno
não é tão clarividente assim no livro de Jacques Bonnet, talvez porque esteja excessivamente ocupado em expor suas próprias idéias
ao leitor -que também será confrontado com esclarecimentos
históricos de diversa natureza à
medida que a ocasião seja propícia. Tudo isso confere certa rigidez à narrativa e prejudica, como
aliás é comum em romances históricos, qualquer verossimilhança
no diálogo.
Trata-se de livro de historiador,
mais do que de romancista, e as
sentenças de Bruno -sobre o fanatismo religioso, o papel da Justiça ou os limites da própria filosofia-, embora merecedoras de
admiração pelo que têm de atual e
razoável, parecem feitas de colagens textuais, intervindo de modo
forçado nos diálogos.
Tanto didatismo expositivo tende a ser comum nos romances
que mobilizam personagens históricos reais. Sem dúvida, sua origem está no fato de que a literatura moderna abandonou a figura
do narrador onisciente, característica de épocas mais "objetivistas" e autoconfiantes. Tal figura
faz falta em romances que, a meio
caminho entre a erudição e o entretenimento, precisam transmitir ao leitor leigo todo o contexto
da ação. O diálogo entre personagens não substitui a contento esse
narrador.
Curiosamente, a fluência autoral é maior na introdução autobiográfica de "O Emblema da
Amizade", onde ficamos conhecendo as circunstâncias que levaram Bonnet a tratar de Giordano
Bruno. Uma tênue rede de relações pessoais e bibliográficas adquire intensidade e paixão em
poucas páginas. Não é a única
passagem do livro em que erudição e literatura se combinam: as
descrições do cotidiano parisiense, da própria geografia da cidade
no século 16, também oferecem
um foco autônomo de interesse.
O leitor atual de histórias policiais, simultaneamente atento e
disperso, apressado quanto à trama, mas sequioso de informações
de todo tipo, achará afinal com
que se entreter.
O Emblema da Amizade
Autor: Jacques Bonnet
Tradutor: Paulo Neves
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 25 (143 págs.)
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