São Paulo, terça-feira, 16 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Com respeito a essa sujeira


Não fôssemos nós, vocês teriam de se haver mais tempo com o que há de podre em si mesmos!

HÁ QUEM diga "coletor de lixo"... É correto.
Pode ser "funcionário da limpeza urbana", um eufemismo.
Ou ainda, atestando mais do pavor que têm do frescor das palavras, seria o "pessoal da prefeitura"... Como se toda a prefeitura se dedicasse à limpeza. Infelizmente, não é assim.
Assim sou eu o designado para o asseio disso tudo. A primeira pessoa do coitado do singular do verbo ser!
Pois é; todos são qualquer coisa e eu sou lixeiro, com essas sete letras minúsculas que os maiúsculos acreditam poder acobertar por baixo de seus tapetes sujos de tramas...
O drama é que o próximo dia 21 de outubro é o nosso dia. O dia do lixeiro deveria ser um dia de descanso com a minha família, mas a sujeira que as suas fazem não me livram do trabalho neste dia de domingo.
Não ganharei nada mais que a miséria das horas extras do meu salário de fome, enquanto as suas nobres sobras segregadas serão arremessadas pelas latas escondidas. Estaremos pendurados em caminhões especialmente preparados para aspirar e varrer, recolhendo os seus sacos cheios daquilo tudo que teimam em se livrar.
Lamentamos informar: é impossível. Do pó mixo viemos e ao pó do lixo voltaremos.
Isso nós sabemos muito bem, ainda que os piores, ou que se querem "muito limpos", insistam que são melhores do que isso e que, por isso, irão para alguma espécie higiênica de paraíso...
Que é que Deus tem a ver com esse lixo? Nós, pelo menos, recolhemos democraticamente o de Higienópolis e o de Paraisópolis, sem essa distinção que ricos e pobres, pretos e brancos, judeus ou muçulmanos fazem entre eles.
Somos todos "hermanos", por menos que queiramos, meus caros! Malandros e otários excretam a mesma substância em seus vasos sanitários e produzem a mesma quantidade de dejetos.
Recolho aquilo que foi usado. O abjeto espremido, apertado e esvaziado para saciar os seus prazeres. Faço-lhes o bem, ainda que vocês desviem os rostos com os narizes empinados e as bocas esgarçadas de nojo quando nos vêem. Não fôssemos nós, vocês teriam de se haver mais tempo com o que há de podre em si mesmos!
O lixeiro pode observar essas nuances do progresso tão falado por meio dos equipamentos que são jogados como inúteis, quebrados ou simplesmente ultrapassados. Há algo de bom em ver as coisas velhas, abandonadas e estragadas. A gente aprende a se despreocupar da necessidade de ser jovem e abusado de alguma maneira, que é uma das manias -ou besteiras- dessa juventude seduzida por vitrines, propagandas e novelas.
Por isso nosso serviço é tão importante nessa república de bananas. Ele mantém as mentes dos eleitores crentes que são limpas as intenções dos eleitos, enquanto os mais sacanas dentre eles fazem a roda de sua fortuna girar no lixo dessa história de bacanas.
A verdadeira sujeira gira à luz do dia, quando os senadores abrem os bancos, as bolsas e as lojas, os seguranças se põem em seus carros acelerados, homens e papéis são amassados num emprego suado, fedido e repetido desde sempre.
Muitos se submetem a essa escravidão de todo dia.
Eu só me submeto ao lixo. E o lixo é como o mar, fascinante e traiçoeiro. Com ele eu me meto com prazer, mas hei de conhecer os seus riscos mais cortantes. Uso luvas e cruzo os dedos. Que é que eu posso fazer?
Quem poderá conceber o que é o bom sem conhecer o que é o mal?
Quando as pessoas me perguntam "mas por quê?" eu sou lixeiro e como eu agüento essas coisas de que falo, eu devolvo-lhes a pergunta: quero saber se têm certeza que estão fazendo um serviço mais limpo do que esse para a humanidade, além de sujarem o planeta com as imundícies de sua moralidade?
Há lixo em tudo. Em mim, em você... e você sabe muito bem do que falo. O lixo fermenta e faz nascer outras coisas também! Nem a natureza seria isso sem o seu próprio lixo. São os porcos que fazem as pérolas.
O lixeiro está entregue ao movimento das ruas, às noites de lua e aos vampiros das madrugadas. Vemos o que não queremos, mas os nossos olhos pelo menos são puros...
Dia desses, por exemplo, um cadáver todo torto apareceu lá no aterro. Estava baleado na nuca, como um condenado. Era quase um menino, não fosse um anjo morto. Primeiro rezamos pra melhorar a situação da alma, depois chamamos a polícia pra cuidar do corpo, que nem toda a sujeira perpetrada neste mundo é luxo de nossa alçada.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Laura Vinci constrói obra perecível
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.