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A crônica como gênero e como antijornalismo
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
A crônica só é gênero menor
em termos de literatura. Admite-se como inabalável a certeza
de que a literatura tende a ser
perene, intemporal. Não faltam
teóricos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literária, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crônica é crônica
mesmo, expressão de finitude. É
temporal, fatiada da realidade
e desvinculada do tempo maior
que é o da literatura como arte.
Mas daí não se deve concluir
que ela seja uma defunta. Dizem que se trata de produto típico do jornalismo brasileiro,
mas não exclusivo. Sendo por
definição um texto datado, tem
fases, sacrifica-se a modismos,
mas, devido à elegância ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver em diferentes
manifestações pleonasticamente crônicas: como gênero (crônica) e como vinculada a um
tempo (crônica também).
Temos a crônica esportiva, a
social, a policial, a política, a
econômica. Elas se diferenciam
do "artigo" porque é basicamente centrada num eixo permanente: o "eu" do autor. Daí
que o gênero é romântico por
definição e necessidade.
O artigo procura a objetividade, a clareza, o raciocínio, o
desdobramento de premissas e
uma conclusão. Baseia-se na
fonte de informação cultural ou
factual, expressa-se numa linguagem apropriada para ser
uma coisa e outra, ou seja, objetiva e informativa.
Já a crônica, gravitando em
torno dos mesmos segmentos
(política, esporte, economia,
polícia, sociedade etc.) tem menos ou nenhum compromisso
com a objetividade ou a informação. Sua validade (nunca a
necessidade) dependerá da
qualidade do texto em si. Há
cronistas esportivos de excelente texto (Mário Filho e Nelson
Rodrigues no passado, Armando Nogueira hoje), como há
bons cronistas em cada um desses nichos jornalísticos.
Evidente que, entre os segmentos citados, tem destaque a
literatura, daí resultando que a
crônica literária tem um núcleo
afim ao do romance, do conto e
da poesia. Foi nele que tiveram
glória Humberto de Campos e
Rubem Braga, para citar um
antigo e um mais recente. Mas
o maior de todos é mesmo Machado de Assis, que fazia uma
crônica bastante eclética, pulando de um nicho ao outro e,
muitas vezes, absorvendo num
único texto todos os segmentos,
inclusive o literário.
A imprensa moderna, altamente competitiva e cara, não
chegou a mutilar o gênero, mas
direcionou-o a estratégia geral
do que hoje se chama "comunicação". Numa palavra: exige
que tudo o que é veiculado no
jornal ou revista, das condições
do tempo ao desempenho das
bolsas, seja útil ao leitor, seja
aquilo que nas redações é chamado de "serviço".
Daí que sobra um espaço reduzido ao cronista sem assunto,
sem informação e sem outro
serviço que não o estilo mais sofisticado que só será apreciado
por determinados leitores e não
pela massa consumidora do
jornal ou revista.
Quanto à falta de vida que
Rubem Braga condenava na
imprensa em geral, justificando
dessa forma sua brilhante militância na crônica, prefiro discordar com alguma veemência.
Vida é o que não falta no jornal. Há até demais. O que falta
é uma qualidade (ou defeito)
que foi banida das redações e se
tornou a besta-negra do jornalismo: a emoção.
Temos a vida demais -disse
acima. Desastres, inundações,
estupros, explorações da fé e do
mercado, remédios falsificados,
políticos corrompidos e corruptores, vedetes grávidas ou a engravidar, bolsas despencando,
atletas se dopando -tudo isso
é vida. Vida que pode ser bem
ou mal descrita pelos cronistas
de cada setor.
Banida do texto jornalístico, a
emoção foi considerada cafona,
desnecessária, primária. Nelson
Rodrigues reclamava da falta
de pontos de exclamação nas
manchetes, mesmo nas mais
prosaicas. Exemplo: "Pânico na
Bolsa de Nova York!" é uma
coisa. Sem exclamação é outra.
Não se conclua que a emoção
seja simples pontuação. Ela é
uma forma de ver o mundo, um
estilo de sofrer ou de gozar a vida. Dou o exemplo que mais tenho à mão, que é o meu mesmo.
Quando morreu Mila, minha
maior amiga, passei alguns
dias sem escrever a crônica diária na página 2 da Folha. Pediram-me que, ao retomar o
ofício, explicasse aos leitores
que não fora censurado nem reprimido, pois vinha de uma série de artigos contundentes
contra o governo da época
-que por sinal é o mesmo.
Fiz a crônica sobre a morte de
Mila, um texto gemebundo,
sangrento na dor que sentia
-e ainda sinto, pois ainda não
tive coragem de substituí- la.
Houve um surpreendente retorno, a ponto de receber reclamações do serviço de atendimento aos leitores do jornal que
desejavam ter acesso ao meu telefone, fax ou e-mail para mandarem mensagens de consolo e
carinho. Nada menos jornalístico, nada mais churrascaria.
Antes de ser um leitor, o consumidor de jornal é um ser humano tornado carente pela solidão, pelo egoísmo (próprio e
alheio), pelo nenhum sentido
da sociedade como um todo.
Quando um cara tem coragem
de gritar que está sofrendo, fatalmente encontra alguém que
o compreende e, algumas vezes,
o ame. Isso não dá apenas samba. Dá crônica também.
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