|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Comida
Apetite literário
Chega às livrarias a edição brasileira do "Grande Dicionário de Culinária", de Alexandre Dumas
JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL
Num tempo em que apenas
poucos privilegiados podem
degustar trufas -e ainda assim
são obrigados a se contentar
com míseras fatias deste raro,
aromático e caríssimo cogumelo subterrâneo ralado sobre
seus pratos-, impressiona ler
uma receita que manda rechear
uma perua com quase dois quilos da iguaria, cujo valor hoje
pode chegar a R$ 20 mil o quilo.
Trata-se, porém, do contexto
de outra época -no caso, o século 19-, retratada por Alexandre Dumas no "Grande Dicionário de Culinária", cuja edição
brasileira lançada pela editora
Jorge Zahar chega às livrarias
nesta semana. A parte introdutória do original, ausente neste
volume, já havia sido publicada
pela editora em 2005, no livro
"Memórias Gastronômicas".
Um século e meio atrás,
quando começou a coletar material para o dicionário, Dumas
pretendia que ele lhe garantisse
a glória póstuma, o que ocorreu
em parte. Realmente, a obra só
foi publicada na França depois
de sua morte, mas a reputação
literária do autor de "Os Três
Mosqueteiros" e "O Conde de
Monte Cristo", entre outros
tantos, prevaleceu sobre sua fama ligada à culinária.
Tal fato não impede, contudo, que o dicionário seja considerado até hoje uma bíblia gastronômica por chefs e gourmands de todo o mundo. Nem
tanto pelas receitas, um tanto
imprecisas e algumas bem fora
da realidade atual, mas muito
mais por seu caráter histórico e
literário, abundante em crônicas que recolocam a culinária
no universo da cultura.
Traduzida e organizada por
André Telles, a edição brasileira tem 615 verbetes, 413 receitas e 275 ilustrações de época,
de artistas como Gustave Doré
(1832-1883). Em relação às edições francesas (a primeira de
1873, a segunda da ed. Tchou,
de 1965, e a última da ed. Phébus, de 2001, reimpressa em
2005), esta teve cortes "inevitáveis", segundo Telles.
"Tive a sensação de que a edição francesa estava muito desorganizada. Tentei dar um jeito nisso", explica o tradutor e
organizador. "Esta obra reflete
plenamente o jeito de Dumas
ser. E reflete até, de certa maneira, na desorganização. Senti
como se ele tivesse entregado
para mim uma bagunça de fichas e eu tivesse de organizar
isso. [A personalidade do Dumas] transparece até nesse defeito, entre aspas, do original."
Factível ou singular
Não foram apenas os verbetes que sofreram cortes. Das
mais de mil receitas do dicionário original, pouco mais de 400
são transcritas nesta edição. Os
critérios que direcionaram a
chef Sandra Secchin foram basicamente dois: a possibilidade
de execução das receitas (com
as adaptações necessárias) ou
sua singularidade (como, por
exemplo, a perua recheada com
trufas do início deste texto ou a
indicação para que as maçãs sejam descascadas com uma faca
de prata).
"Há receitas que ficaram porque são testemunhas de um
tempo", explica Secchin. "Também deixei algumas referências
por serem curiosas. No caso da
maçã, é uma exuberância trazida para a cozinha não pela sofisticação da prata, mas porque
tem um sentido [impedir que a
fruta se oxide rapidamente].
Achei que era enriquecedor
mantê-la."
Encaixam-se nesse perfil,
por exemplo, preparos que recomendam o uso do "feu dessus
et feu dessous" (fogo em cima e
fogo embaixo), ou seja, pôr brasas sobre a tampa da panela.
Para quê? Para cozinhar bem
por cima e por baixo.
"Se a pessoa tiver a possibilidade de cozinhar no fogão à lenha, pode pegar a brasa e colocar na tampa quando houver
essa indicação. Imagino que seria muito interessante experimentar essa maneira."
Cozinha tradicional
Em relação à imprecisão das
receitas contidas no dicionário,
já que muitas não trazem medidas milimétricas dos ingredientes, Sandra faz sua avaliação: "O jeito que Dumas aborda
a cozinha dá liberdade a quem
está cozinhando. As receitas
permitem uma folga. Sempre
que possível, tentei colocar
uma indicação de proporção,
mas, no geral, é tudo mais livre.
E isso é interessante".
Mas, nos dias de hoje, algumas receitas não parecem um
tanto defasadas? "Não é um livro de cozinha nos moldes dos
de hoje, com todas as medidas
indicadas e pratos com ar moderno. Não. É uma cozinha de
verdade, é a retomada da cozinha tradicional. Você vai lá na
espuma [criação do chef Ferran
Adrià] para depois voltar às bases da tradição."
Assim, o dicionário atinge
não só os iniciados na cozinha.
"O bacana é que não é um livro de receitas. É muito mais do
que isso. O dicionário, mesmo
para quem não vai para a cozinha, é uma leitura interessante.
Ele se coloca além da função do
dicionário comum. Alguém que
não tem a menor intenção de ir
para a cozinha, vai lê-lo aleatoriamente e se deliciar com o
texto", diz Secchin. "Ele abre o
apetite, convida, incita a sentar
à mesa com os amigos, a tomar
um vinho."
GRANDE DICIONÁRIO DE CULINÁRIA
Autor: Alexandre Dumas
Tradução: André Telles e Sandra
Secchin
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 89 (340 págs.)
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Comentário: Grande literato, mas um chef despreparado Índice
|