São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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Comida

Apetite literário

Chega às livrarias a edição brasileira do "Grande Dicionário de Culinária", de Alexandre Dumas

JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL

Num tempo em que apenas poucos privilegiados podem degustar trufas -e ainda assim são obrigados a se contentar com míseras fatias deste raro, aromático e caríssimo cogumelo subterrâneo ralado sobre seus pratos-, impressiona ler uma receita que manda rechear uma perua com quase dois quilos da iguaria, cujo valor hoje pode chegar a R$ 20 mil o quilo.
Trata-se, porém, do contexto de outra época -no caso, o século 19-, retratada por Alexandre Dumas no "Grande Dicionário de Culinária", cuja edição brasileira lançada pela editora Jorge Zahar chega às livrarias nesta semana. A parte introdutória do original, ausente neste volume, já havia sido publicada pela editora em 2005, no livro "Memórias Gastronômicas".
Um século e meio atrás, quando começou a coletar material para o dicionário, Dumas pretendia que ele lhe garantisse a glória póstuma, o que ocorreu em parte. Realmente, a obra só foi publicada na França depois de sua morte, mas a reputação literária do autor de "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde de Monte Cristo", entre outros tantos, prevaleceu sobre sua fama ligada à culinária.
Tal fato não impede, contudo, que o dicionário seja considerado até hoje uma bíblia gastronômica por chefs e gourmands de todo o mundo. Nem tanto pelas receitas, um tanto imprecisas e algumas bem fora da realidade atual, mas muito mais por seu caráter histórico e literário, abundante em crônicas que recolocam a culinária no universo da cultura.
Traduzida e organizada por André Telles, a edição brasileira tem 615 verbetes, 413 receitas e 275 ilustrações de época, de artistas como Gustave Doré (1832-1883). Em relação às edições francesas (a primeira de 1873, a segunda da ed. Tchou, de 1965, e a última da ed. Phébus, de 2001, reimpressa em 2005), esta teve cortes "inevitáveis", segundo Telles. "Tive a sensação de que a edição francesa estava muito desorganizada. Tentei dar um jeito nisso", explica o tradutor e organizador. "Esta obra reflete plenamente o jeito de Dumas ser. E reflete até, de certa maneira, na desorganização. Senti como se ele tivesse entregado para mim uma bagunça de fichas e eu tivesse de organizar isso. [A personalidade do Dumas] transparece até nesse defeito, entre aspas, do original."

Factível ou singular
Não foram apenas os verbetes que sofreram cortes. Das mais de mil receitas do dicionário original, pouco mais de 400 são transcritas nesta edição. Os critérios que direcionaram a chef Sandra Secchin foram basicamente dois: a possibilidade de execução das receitas (com as adaptações necessárias) ou sua singularidade (como, por exemplo, a perua recheada com trufas do início deste texto ou a indicação para que as maçãs sejam descascadas com uma faca de prata).
"Há receitas que ficaram porque são testemunhas de um tempo", explica Secchin. "Também deixei algumas referências por serem curiosas. No caso da maçã, é uma exuberância trazida para a cozinha não pela sofisticação da prata, mas porque tem um sentido [impedir que a fruta se oxide rapidamente].
Achei que era enriquecedor mantê-la." Encaixam-se nesse perfil, por exemplo, preparos que recomendam o uso do "feu dessus et feu dessous" (fogo em cima e fogo embaixo), ou seja, pôr brasas sobre a tampa da panela. Para quê? Para cozinhar bem por cima e por baixo.
"Se a pessoa tiver a possibilidade de cozinhar no fogão à lenha, pode pegar a brasa e colocar na tampa quando houver essa indicação. Imagino que seria muito interessante experimentar essa maneira."

Cozinha tradicional
Em relação à imprecisão das receitas contidas no dicionário, já que muitas não trazem medidas milimétricas dos ingredientes, Sandra faz sua avaliação: "O jeito que Dumas aborda a cozinha dá liberdade a quem está cozinhando. As receitas permitem uma folga. Sempre que possível, tentei colocar uma indicação de proporção, mas, no geral, é tudo mais livre.
E isso é interessante". Mas, nos dias de hoje, algumas receitas não parecem um tanto defasadas? "Não é um livro de cozinha nos moldes dos de hoje, com todas as medidas indicadas e pratos com ar moderno. Não. É uma cozinha de verdade, é a retomada da cozinha tradicional. Você vai lá na espuma [criação do chef Ferran Adrià] para depois voltar às bases da tradição."
Assim, o dicionário atinge não só os iniciados na cozinha. "O bacana é que não é um livro de receitas. É muito mais do que isso. O dicionário, mesmo para quem não vai para a cozinha, é uma leitura interessante. Ele se coloca além da função do dicionário comum. Alguém que não tem a menor intenção de ir para a cozinha, vai lê-lo aleatoriamente e se deliciar com o texto", diz Secchin. "Ele abre o apetite, convida, incita a sentar à mesa com os amigos, a tomar um vinho."


GRANDE DICIONÁRIO DE CULINÁRIA
Autor:
Alexandre Dumas
Tradução: André Telles e Sandra Secchin
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 89 (340 págs.)


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