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comentário
Grande literato, mas um chef despreparado
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Abri o "Grande Dicionário de Culinária" de Dumas
sempre que precisei consultá-lo, mas sabendo que
acharia ali as coisas mais
antigas, é claro, e o encarei
sempre mais como um
testemunho de uma época, como uma curiosidade
escrita pelo autor de "Os
Três Mosqueteiros", os
Harry Potters de minha
época de menina. Tudo isso para dizer que um dicionário não pode ser criticado sem ter sido muito consultado e comparado, pois
eu correria o risco de ser
leviana e superficial.
Os tradutores expõem,
na introdução, os motivos
que os levaram a uma tarefa tão difícil quanto a de
editar e traduzir um dicionário antigo. Pareceram-me conscienciosos e capazes (além de doidos).
A sorte é que tive um
amigo inglês, autor do
"The Oxford Companion
to Food". Ele, sim, se interessou muito pelo dicionário de Alexandre Dumas,
visitou bibliotecas à caça
do original e chegou a
achar que ambos tinham
mais em comum do que as
iniciais do nome e de serem simples compiladores. Unia-os a esperança,
que Dumas manifestou, de
que merecesse a atenção
de "homens de bom caráter" e de mulheres de disposição leviana que, mesmo com suas cabeças ocas,
conseguissem virar as páginas com facilidade e sem
cansaço, por estarem lendo uma prosa fluente e divertida.
Alan Davidson, após
muita pesquisa e depois de
ir procurar o original na
Biblioteca Nacional de Paris, chegou à conclusão de
que Dumas não estava
preparado, como ele próprio supunha estar, para
escrever esse livro. Seu conhecimento dos ingredientes era falho, o conhecimento das cozinhas estrangeiras, superficial, e o
comando das disciplinas
associadas ao assunto, nulo ou elementar.
Seu entusiasmo sedutor
e a quantidade de suas viagens, mais o fato de ter
uma reputação de grande
e prolixo escritor, mais a
de bom cozinheiro, conspiraram para lhe dar uma
confiança sem muita base.
Dumas, para escrever o
dicionário, não levou para
o seu retiro nem livros de
referência, porque confiava na memória. Os assessores também não estavam à altura do trabalho,
despreparados no assunto. Como curiosidade, um
deles era Anatole France
ainda rapazinho, que dizia
ter agregado ao texto muitos comentários próprios
-aliás, todos perceptivelmente fora de lugar na
obra.
Mas, depois de longos
estudos sobre o livro, meu
amigo Alan Davidson se
rendeu, como se rendem
todos.
"Critique-se o dicionário como e quanto quiser,
mas temos que anunciar
com prazer que nele podemos achar ouro, e do puro,
que muitas das anedotas
nunca foram contadas
com tanta graça, que o entusiasmo do autor e o magnetismo de sua personalidade ainda brilham através de suas páginas, cem
anos depois, e que o livro
que produziu, apesar de
ofuscado por outros livros
de gastronomia que vieram antes e depois dele,
ainda continua um dos
momentos mais permanentes de sua obra."
Pois, é, então valeu.
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