São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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comentário

Grande literato, mas um chef despreparado

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Abri o "Grande Dicionário de Culinária" de Dumas sempre que precisei consultá-lo, mas sabendo que acharia ali as coisas mais antigas, é claro, e o encarei sempre mais como um testemunho de uma época, como uma curiosidade escrita pelo autor de "Os Três Mosqueteiros", os Harry Potters de minha época de menina. Tudo isso para dizer que um dicionário não pode ser criticado sem ter sido muito consultado e comparado, pois eu correria o risco de ser leviana e superficial.
Os tradutores expõem, na introdução, os motivos que os levaram a uma tarefa tão difícil quanto a de editar e traduzir um dicionário antigo. Pareceram-me conscienciosos e capazes (além de doidos).
A sorte é que tive um amigo inglês, autor do "The Oxford Companion to Food". Ele, sim, se interessou muito pelo dicionário de Alexandre Dumas, visitou bibliotecas à caça do original e chegou a achar que ambos tinham mais em comum do que as iniciais do nome e de serem simples compiladores. Unia-os a esperança, que Dumas manifestou, de que merecesse a atenção de "homens de bom caráter" e de mulheres de disposição leviana que, mesmo com suas cabeças ocas, conseguissem virar as páginas com facilidade e sem cansaço, por estarem lendo uma prosa fluente e divertida.
Alan Davidson, após muita pesquisa e depois de ir procurar o original na Biblioteca Nacional de Paris, chegou à conclusão de que Dumas não estava preparado, como ele próprio supunha estar, para escrever esse livro. Seu conhecimento dos ingredientes era falho, o conhecimento das cozinhas estrangeiras, superficial, e o comando das disciplinas associadas ao assunto, nulo ou elementar.
Seu entusiasmo sedutor e a quantidade de suas viagens, mais o fato de ter uma reputação de grande e prolixo escritor, mais a de bom cozinheiro, conspiraram para lhe dar uma confiança sem muita base.
Dumas, para escrever o dicionário, não levou para o seu retiro nem livros de referência, porque confiava na memória. Os assessores também não estavam à altura do trabalho, despreparados no assunto. Como curiosidade, um deles era Anatole France ainda rapazinho, que dizia ter agregado ao texto muitos comentários próprios -aliás, todos perceptivelmente fora de lugar na obra.
Mas, depois de longos estudos sobre o livro, meu amigo Alan Davidson se rendeu, como se rendem todos.
"Critique-se o dicionário como e quanto quiser, mas temos que anunciar com prazer que nele podemos achar ouro, e do puro, que muitas das anedotas nunca foram contadas com tanta graça, que o entusiasmo do autor e o magnetismo de sua personalidade ainda brilham através de suas páginas, cem anos depois, e que o livro que produziu, apesar de ofuscado por outros livros de gastronomia que vieram antes e depois dele, ainda continua um dos momentos mais permanentes de sua obra."
Pois, é, então valeu.


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