São Paulo, sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

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CINEMA

Em "Quem é Morto Sempre Aparece", Robin Williams vive agente de viagem que tenta dar golpe na seguradora

Humor negro camufla história de amor moderna

CLAUDIO SZYNKIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Estar diante de um filme de amor não é a impressão que temos nos estágios iniciais de "Quem é Morto Sempre Aparece". Há o quase delicado joão-ninguém Paul Barnell (Robin Williams), casado com uma mulher mentalmente abalada. Uma criança de seis anos em formato de 40 vivendo, alienada da vida adulta, em uma bolha de fabulações. Falido, Paul tem a idéia de explorar a apólice do irmão desaparecido há anos. O problema surge quando a seguradora, desconfiada, exige a comprovação de óbito, o que ele resolve com um cadáver achado no lixo.
Golpe aplicado, arma-se a confusão, envolvendo, além dele e da seguradora, mafiosos. Mas é um filme de amor, sobretudo porque é um filme de vulneráveis: passa-se no Alasca, que é a terra dos vulneráveis, comprovadamente. Espaço infinito e congelado, nele as pessoas vivem em estado de angústia cordial, mas perpétua, já que angústia é certamente sentir frio. Terra dos vulneráveis também pois todos, ainda que convivam, estão meio sozinhos.
A vulnerabilidade é amplificada pelo reaparecimento do irmão de Paul, o paspalho truculento Ray, que descobre a farsa e, brigão, lega aos outros personagens uns 50 minutos de hematomas: a vulnerabilidade na carne, a mais visível.
Essa comédia de humor negro, assim, camufla o mais ordinariamente humano. Pessoas que precisam, afinal, se salvar. Mas não se trata de dinheiro: os abismos aqui são a solidão e a tristeza. Talvez demore para que entendamos que estamos diante não de gente sórdida, mas de gente frágil: Paul forja todo seu plano visando patrocinar a felicidade da mulher, para salvá-la e para salvar a si mesmo. Quer ter grana para, sabe-se lá, levá-la a algum lugar, a algum sonho que, quando realizado, a devolva como era antes.
A relação que o cinema propõe entre amor e sistema é eterna. Nos filmes de Fritz Lang ("Desejo Humano", por exemplo, cujo tema pode ser sintetizado em "se toca que a garota é chave de cadeia"), os homens ficam próximos do pecado social, da infração das leis, por paixão e tesão fulminantes. Isso nos anos 50.
Agora, nos anos de 00, no meio dessa população de zumbis emocionais, que respira o ar polar -não do Alasca, mas do arrivismo e do individualismo-, o amor e o impulso de burlar normas do sistema não têm a ver com desejo e pulsação. É tudo questão de fuga, exílio em alguém que você possa cuidar ou que cuide de você. Erotismo dissolvido, a relação entre Paul e a mulher, desviada, é de pai e filha. Ele precisa protegê-la e, assim, se proteger do mundo. Uma pena então que o diretor sofra para conduzir a história, demore para emancipar os personagens do mero recalque e a si próprio das engrenagens do roteiro. Falta liberdade. Sem contar sua dificuldade em instalar de fato nossos sentidos naquele cenário inocultável. Mesmo assim, vale pela insana jornada sentimental de Paul.


Quem é Morto Sempre Aparece
The Big White
   

Direção: Mark Mylod
Produção: EUA, 2005
Com: Robin Williams, Woody Harrelson

Quando: a partir de hoje nos cines Cineclube Vitrine e Espaço Unibanco


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