São Paulo, sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Ilha Grande - Verde e Barroca

Como na Roma de antigamente, na baía de Angra dos Reis (365 ilhas, uma para cada dia do ano), todos os caminhos levam à Ilha Grande. Principalmente por mar. Para as naus de Gonçalo Coelho que ali chegavam, ela se destacava não apenas pelo tamanho, mas pela altura e pela vegetação que estreitava o horizonte à medida que as caravelas com a cruz de Malta dela se aproximavam.
Tanto e tão surpreendentemente que nem parecia uma ilha, mas um esporão rendilhado do continente. Ao contrário de Pedro Álvares Cabral, que chegou a um continente e pensou que chegara a uma ilha, dando-lhe o nome de Ilha de Santa Cruz, Gonçalo Coelho chegou a uma ilha e pensou que chegava a um continente.
Pelo caminho, no trecho entre o Rio de Janeiro e São Vicente, encontraram numerosas ilhas, mas todas ostensivamente ilhas -porção de terra cercada pelo mar por todos os lados. Algumas rasteiras, formadas por rochas escuras, rodeadas por faixas de vegetação. Outras onduladas, com montanhas que se tornavam azuladas no horizonte. Nenhuma delas, porém, se apresentava com a assombrosa paisagem saída das águas, úmida ainda da criação do mundo.
De tal forma aquela "porção de terra" se destacava do continente, e feito o reconhecimento de seu contorno fantástico, que os navegadores portugueses não mais duvidaram de que se tratava de uma ilha -e bota ilha nisso. Ao contrário dos descobridores do século 16, que tinham audácia demais e imaginação de menos, não precisaram apelar para o calendário religioso, dando à descoberta o nome da festa do dia. As três Américas ficaram pontilhadas de santos e santas, San Diego, Santa Maria de Los Angeles, São Francisco, São Domingos, São Salvador, Santa Catarina, Bahia de Todos os Santos, São Vicente, São Luís etc. Ou de referências pontuais e impressionistas, na maioria das vezes equivocadas, como Rio de Janeiro, Costa Rica.
Para a grande ilha a que chegavam, não havia outro nome capaz de marcá-la e defini-la: Ilha Grande, mesmo, com características próprias, sem uma linha reta maior do que alguns metros. Além de grande ilha, um cenário monumental. Vista do mar, podia ser considerada uma colossal "barroca", aquele tipo de pérola com que os espanhóis diferenciavam algumas delas das pérolas comuns, que são arredondadas, lisas, uniformes. Classificação que serviu, inclusive, para designar um estilo de arte onde a profusão de linhas, o surpreendente do traçado, o inesperado das formas criaram uma nova modalidade de expressão: o barroco.
Sim, uma ilha barroca, com suas enseadas múltiplas e diferenciadas umas das outras, rendilhadas como um gigantesco leque que se abria aos olhos atônitos dos descobridores. Um deles, bem ao estilo dos portugueses, após ter visitado o Rio de Janeiro e logo em seguida ter chegado àquela ilha recentemente absorvida nas primitivas cartas náuticas do tempo, achou que "Deus tinha perdido a cabeça" ao criar aquele trecho do litoral brasileiro.
Vista do mar, é impressionante a sucessão de suas praias. Ao todo, 106, divididas entre as que surgiram no oceano e as que estão próximas do continente. Diferem umas das outras pela cor da areia, pela violência ou calmaria das águas, pelo relevo e pelo tamanho. São únicas, individuais na originalidade que as distingue entre si -e todas da massa do oceano.
A história da Ilha Grande (ela tem uma história desvinculada da história geral do Brasil e da região em que se localiza) é acidentada, freqüentes vezes contraditória. Foi refúgio de piratas, alguns deles a soldo dos reis da França, de Portugal e da Espanha. Pela sua distância do litoral e pelo número e tamanho de sua trilhas, enseadas e grotões, abrigou um leprosário e um presídio, certamente o mais famoso do Brasil, onde, por diferentes motivos, estiveram presos Graciliano Ramos (um escritor, preso por motivos políticos), Mariel Mariscot (um policial corrupto) e Madame Satã, um homossexual bom de briga, de lendária valentia, que imperava no submundo carioca cujo eixo eram a Lapa e suas adjacências.
Piratas, doentes, presidiários, muitos e diferentes habitantes passaram e a ilha ficou como sempre foi e é. Mais recentemente, promoveu-se a paraíso ecológico e, como tudo é possível, um dia ainda será declarada patrimônio da humanidade -apesar dos turistas que ali estão chegando com as habituais e péssimas intenções de tudo aproveitar, trazendo na bagagem a devastação e a poluição.
A ilha impressiona de qualquer ângulo, tanto na visão panorâmica como no "close", com suas areias, matas e montanhas nascidas abruptamente das águas. De uma delas surge um ponto culminante de tal forma nítido que, tal como o nome da própria ilha, não foi difícil designá-lo: "Bico de Papagaio". Parece realmente um formidável papagaio, do qual só vê o assombroso bico, tendo o corpo descomunal encoberto pela compacta vegetação ao redor. Tudo a ver com o nome dado nos mapas europeus aos domínios incorporados à Coroa Portuguesa: "Terra Papagalis". Terra dos papagaios.


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