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LIVRO - LANÇAMENTO
'Vulgo, Grace' deixa escolha para o leitor
LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha
A história verídica de Grace
Marks, jovem de 16 anos que, em
meados do século 19, foi condenada à prisão perpétua por ter supostamente participado do assassinato de duas pessoas no Canadá, é o
tema de "Vulgo, Grace", novo livro da escritora canadense Margaret Atwood, recém-lançado no
Brasil pela editora Marco Zero.
Leia, a seguir, a entrevista que
Atwood concedeu por telefone à
Folha.
Folha - O que mais impressiona
na história de Grace é o caráter
completamente ambíguo da personagem. A sra. concorda?
Atwood - Ela tem algumas caras. É uma personagem histórica,
para começar. E as pesquisas nos
jornais da época mostram uma
Grace criança, vítima, inocente
etc. E mostram também uma Grace monstruosa, que teria dado a
idéia do duplo assassinato a
McDermott. Não só os jornais,
mas os arquivos públicos e toda espécie de documentos existentes
apontam diferenças até mesmo físicas entre as duas Graces. Para alguns, ela tinha olhos azuis, para
outros, olhos castanhos, para alguns era ruiva, para outros, morena... Isso é que é impressionante. E
havia a questão política. Para os
conservadores, ela era culpada,
para os reformadores, inocente.
Folha - Grace Marks, na sua opinião, é culpada ou inocente?
Atwood - (Risos) Eu sou apenas
uma romancista. Prefiro o segredo. Mas o fato é que a própria história, nesse caso, guardou o segredo. Houve um processo na época.
E ele não foi conclusivo. Uma coisa
é clara: não foi Grace quem matou
Kinnear, foi James McDermott sozinho. O problema é: quem matou
Nancy Montgomery? Kinnear era
um mulherengo, Nancy estava
grávida dele. De modo que devia
haver ciúme, rivalidade, ódio entre os quatro. Mas não há nada
conclusivo, o processo ficou arquivado. É inconclusivo, vocês podem escolher. Eu deixo a escolha
para o leitor.
Folha - O seu título, "Alias Grace" ("Vulgo, Grace") é eloquente
nesse sentido. Por falar nisso, o
que a sra. acha do título brasileiro,
"Vulgo, Grace", com vírgula separando a expressão adverbial e o
sujeito?
Atwood - Por que a vírgula?
Teríamos de perguntar... Não deixa de ser interessante: ela faz o leitor parar para pensar.
Folha - Grace era muito jovem e
muito bonita, isso é certo. Foram
as qualidades femininas que a livraram da forca?
Atwood - No século 19, todos
achavam que o sexo feminino era o
mais fraco. E não só fisicamente.
Acreditava-se também que a mulher tinha nervos mais fracos. Todos aqueles desmaios, aquelas crises emocionais... Muitos estudos
foram feitos sobre isso na época.
Folha - Então, são as qualidades
femininas, de fato, que salvam
Grace? Será que poderíamos pensar que Grace jogou com isso?
Atwood - Os advogados jogaram com isso.
Folha - Há sempre uma mulher
no papel principal em seus romances. E quase sempre são mulheres
que dominam, que dão as cartas,
como em "A Noiva Ladra" (Marco
Zero). Isso não autorizaria seus leitores a pensarem que é Grace
quem engana McDermott e os psiquiatras, disfarçando-se de idiota?
Isso é possível?
Atwood - Bom, o que se sabe,
pelos historiadores, é que ela não
era burra. Foram encontradas referências a cartas que ela escrevia,
ela sabia ler e escrever, apesar de
sua condição social. Há também
uma referência a uma manifestação que ela própria teria organizado contra as autoridades carcerárias. Ela não era, absolutamente,
uma retardada, uma idiota, talvez
fosse até muito inteligente. Ou
simplesmente inteligente.
Folha - Tudo isso se passa no momento histórico imediatamente
anterior a Freud, na época de Madame Bovary. Gostaria de ouvi-la
falar sobre Freud. Na sua opinião,
Freud endossa esse pensamento
do século 19 sobre o sexo frágil de
que acabamos de falar? Ele piora
ou melhora o quadro?
Atwood - As idéias de Freud
saíram de pesquisas feitas cerca de
cem anos antes dele. Ele suprimiu
essa parte. Mas essa é uma época já
freudiana, nesse sentido. Uma
época com uma enorme quantidade de teorias sobre a loucura, a histeria, os desmaios histéricos.
Freud é um homem de seu tempo.
Como poderia ele evitar essas teorias que o circundam sobre o feminino? Não, ele não faz avançar as
coisas. Dado o seu estatuto de
cientista, ele realça esse tipo de
pensamento. Era muito difícil, na
época, contradizer o discurso
científico.
Folha - Para algumas pensadoras
contemporâneas de formação psicanalítica, a histeria feminina seria
o resultado de um conflito entre os
acenos da modernidade e o confinamento da mulher no lar burguês. Um conflito que não teria
sentido no mundo atual. Em sua
visão, a histeria feminina é fenômeno do século de Grace Marks?
Atwood - Histéricas como
Charcot, aquelas a quem Freud pedia que fizessem seu número de
circo, só fazem sentido no século
19. E no 18 e no 17.
No nosso século, acho que a histeria foi substituída pela depressão. Eu não sou psicanalista, sou
apenas uma pobre romancista,
mas acho que há, hoje, mais depressivas que histéricas.
Folha - Lendo sobre a sra., eu me
deparei com uma resposta sua
àquela famosa pergunta, aliás
francesa: "por que você escreve?"
A senhora respondia: "escrevo para levar uma vida dupla". É o caso
das histéricas. Talvez o de Grace
Marks. O que, exatamente, a senhora quis dizer com isso?
Atwood - Primeiramente, se
você está preso, como Grace, a vida dupla é uma imposição. Se, na
situação dela, ela fosse dizer o que
pensava, seria pior para ela. Ela tinha, forçosamente, que guardar
coisas para si, em total segredo. No
século 19, é simplesmente uma situação das mulheres em geral. No
caso de Grace, apenas exacerbada
pelo fato de ela estar na cadeia.
Quanto aos escritores, todos levam, naturalmente, uma vida dupla. Pelo simples fato de que o tempo da experiência literária não é o
tempo da experiência cotidiana.
Você vive, toma o café da manhã
etc... Ao mesmo tempo, a heroína
está sendo acusada, tudo no mesmo dia. Você toma o seu café da
manhã e ela vai para a cadeia.
Folha - Já que estamos falando
disso, o que movimenta a criação
literária são os próprios textos,
que se trataria de refazer, como
querem as teorias da intertextualidade ou da influência, ou a literatura tem mais a ver com a vida?
Atwood - Mas por que separar
as coisas? Claro, se escrevemos, é
porque existem outros escritores.
Sem os seus livros, os nossos nunca começariam. Mas, na verdade,
o que se leva para dentro de um
livro são coisas de toda espécie.
Outros livros, certamente, mas
também pedaços de experiência,
notícias de jornal, os amigos, nossas conversas com os amigos, nossas idas e vindas por aqui e por ali,
perambulações por aí, como ...
Charles Dickens!
Folha - Os direitos de "Vulgo,
Grace" já foram vendidos para
Holywood?
Margaret Atwood - Já. Optamos pela companhia de Jodie Foster, a Egg Productions. Mas nada
foi feito ainda, não existe um roteiro, por ora. Ele está a caminho.
Folha - A sra. já vê alguém no papel de Grace Marks? Ela é praticamente uma criança quando se envolve com aqueles crimes... Deve
ser difícil encontrar alguém tão jovem com toda a carga de ambiguidade requerida.
Atwood - Eu não tenho a menor idéia. Não estou em Holywood. Grace é muito nova, realmente, na época em que é acusada
dos assassinatos. Teria de ser uma
novata.
Mas, como ela tem três idades,
tudo vai depender do roteiro. Existe a Grace de 16 anos, que vive o
momento do processo, a Grace de
30 anos, que fala com o médico do
asilo de loucos, e a Grace que vai
para os Estados Unidos depois de
solta.
Leda Tenório da Motta é professora na
Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da
PUC-SP. Autora de "Catedral em Obras" (Iluminuras) e "Lições de Literatura Francesa" (Imago).
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