São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 1998.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO - LANÇAMENTO
'Vulgo, Grace' deixa escolha para o leitor

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha

A história verídica de Grace Marks, jovem de 16 anos que, em meados do século 19, foi condenada à prisão perpétua por ter supostamente participado do assassinato de duas pessoas no Canadá, é o tema de "Vulgo, Grace", novo livro da escritora canadense Margaret Atwood, recém-lançado no Brasil pela editora Marco Zero.
Leia, a seguir, a entrevista que Atwood concedeu por telefone à Folha.

Folha - O que mais impressiona na história de Grace é o caráter completamente ambíguo da personagem. A sra. concorda?
Atwood -
Ela tem algumas caras. É uma personagem histórica, para começar. E as pesquisas nos jornais da época mostram uma Grace criança, vítima, inocente etc. E mostram também uma Grace monstruosa, que teria dado a idéia do duplo assassinato a McDermott. Não só os jornais, mas os arquivos públicos e toda espécie de documentos existentes apontam diferenças até mesmo físicas entre as duas Graces. Para alguns, ela tinha olhos azuis, para outros, olhos castanhos, para alguns era ruiva, para outros, morena... Isso é que é impressionante. E havia a questão política. Para os conservadores, ela era culpada, para os reformadores, inocente.
Folha - Grace Marks, na sua opinião, é culpada ou inocente?
Atwood -
(Risos) Eu sou apenas uma romancista. Prefiro o segredo. Mas o fato é que a própria história, nesse caso, guardou o segredo. Houve um processo na época. E ele não foi conclusivo. Uma coisa é clara: não foi Grace quem matou Kinnear, foi James McDermott sozinho. O problema é: quem matou Nancy Montgomery? Kinnear era um mulherengo, Nancy estava grávida dele. De modo que devia haver ciúme, rivalidade, ódio entre os quatro. Mas não há nada conclusivo, o processo ficou arquivado. É inconclusivo, vocês podem escolher. Eu deixo a escolha para o leitor.
Folha - O seu título, "Alias Grace" ("Vulgo, Grace") é eloquente nesse sentido. Por falar nisso, o que a sra. acha do título brasileiro, "Vulgo, Grace", com vírgula separando a expressão adverbial e o sujeito?
Atwood -
Por que a vírgula? Teríamos de perguntar... Não deixa de ser interessante: ela faz o leitor parar para pensar.
Folha - Grace era muito jovem e muito bonita, isso é certo. Foram as qualidades femininas que a livraram da forca?
Atwood -
No século 19, todos achavam que o sexo feminino era o mais fraco. E não só fisicamente. Acreditava-se também que a mulher tinha nervos mais fracos. Todos aqueles desmaios, aquelas crises emocionais... Muitos estudos foram feitos sobre isso na época.
Folha - Então, são as qualidades femininas, de fato, que salvam Grace? Será que poderíamos pensar que Grace jogou com isso?
Atwood -
Os advogados jogaram com isso.
Folha - Há sempre uma mulher no papel principal em seus romances. E quase sempre são mulheres que dominam, que dão as cartas, como em "A Noiva Ladra" (Marco Zero). Isso não autorizaria seus leitores a pensarem que é Grace quem engana McDermott e os psiquiatras, disfarçando-se de idiota? Isso é possível?
Atwood -
Bom, o que se sabe, pelos historiadores, é que ela não era burra. Foram encontradas referências a cartas que ela escrevia, ela sabia ler e escrever, apesar de sua condição social. Há também uma referência a uma manifestação que ela própria teria organizado contra as autoridades carcerárias. Ela não era, absolutamente, uma retardada, uma idiota, talvez fosse até muito inteligente. Ou simplesmente inteligente.
Folha - Tudo isso se passa no momento histórico imediatamente anterior a Freud, na época de Madame Bovary. Gostaria de ouvi-la falar sobre Freud. Na sua opinião, Freud endossa esse pensamento do século 19 sobre o sexo frágil de que acabamos de falar? Ele piora ou melhora o quadro?
Atwood -
As idéias de Freud saíram de pesquisas feitas cerca de cem anos antes dele. Ele suprimiu essa parte. Mas essa é uma época já freudiana, nesse sentido. Uma época com uma enorme quantidade de teorias sobre a loucura, a histeria, os desmaios histéricos. Freud é um homem de seu tempo. Como poderia ele evitar essas teorias que o circundam sobre o feminino? Não, ele não faz avançar as coisas. Dado o seu estatuto de cientista, ele realça esse tipo de pensamento. Era muito difícil, na época, contradizer o discurso científico.
Folha - Para algumas pensadoras contemporâneas de formação psicanalítica, a histeria feminina seria o resultado de um conflito entre os acenos da modernidade e o confinamento da mulher no lar burguês. Um conflito que não teria sentido no mundo atual. Em sua visão, a histeria feminina é fenômeno do século de Grace Marks?
Atwood -
Histéricas como Charcot, aquelas a quem Freud pedia que fizessem seu número de circo, só fazem sentido no século 19. E no 18 e no 17.
No nosso século, acho que a histeria foi substituída pela depressão. Eu não sou psicanalista, sou apenas uma pobre romancista, mas acho que há, hoje, mais depressivas que histéricas.
Folha - Lendo sobre a sra., eu me deparei com uma resposta sua àquela famosa pergunta, aliás francesa: "por que você escreve?" A senhora respondia: "escrevo para levar uma vida dupla". É o caso das histéricas. Talvez o de Grace Marks. O que, exatamente, a senhora quis dizer com isso?
Atwood -
Primeiramente, se você está preso, como Grace, a vida dupla é uma imposição. Se, na situação dela, ela fosse dizer o que pensava, seria pior para ela. Ela tinha, forçosamente, que guardar coisas para si, em total segredo. No século 19, é simplesmente uma situação das mulheres em geral. No caso de Grace, apenas exacerbada pelo fato de ela estar na cadeia.
Quanto aos escritores, todos levam, naturalmente, uma vida dupla. Pelo simples fato de que o tempo da experiência literária não é o tempo da experiência cotidiana. Você vive, toma o café da manhã etc... Ao mesmo tempo, a heroína está sendo acusada, tudo no mesmo dia. Você toma o seu café da manhã e ela vai para a cadeia.
Folha - Já que estamos falando disso, o que movimenta a criação literária são os próprios textos, que se trataria de refazer, como querem as teorias da intertextualidade ou da influência, ou a literatura tem mais a ver com a vida?
Atwood -
Mas por que separar as coisas? Claro, se escrevemos, é porque existem outros escritores. Sem os seus livros, os nossos nunca começariam. Mas, na verdade, o que se leva para dentro de um livro são coisas de toda espécie. Outros livros, certamente, mas também pedaços de experiência, notícias de jornal, os amigos, nossas conversas com os amigos, nossas idas e vindas por aqui e por ali, perambulações por aí, como ... Charles Dickens!
Folha - Os direitos de "Vulgo, Grace" já foram vendidos para Holywood?
Margaret Atwood -
Já. Optamos pela companhia de Jodie Foster, a Egg Productions. Mas nada foi feito ainda, não existe um roteiro, por ora. Ele está a caminho.
Folha - A sra. já vê alguém no papel de Grace Marks? Ela é praticamente uma criança quando se envolve com aqueles crimes... Deve ser difícil encontrar alguém tão jovem com toda a carga de ambiguidade requerida.
Atwood -
Eu não tenho a menor idéia. Não estou em Holywood. Grace é muito nova, realmente, na época em que é acusada dos assassinatos. Teria de ser uma novata.
Mas, como ela tem três idades, tudo vai depender do roteiro. Existe a Grace de 16 anos, que vive o momento do processo, a Grace de 30 anos, que fala com o médico do asilo de loucos, e a Grace que vai para os Estados Unidos depois de solta.


Leda Tenório da Motta é professora na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Autora de "Catedral em Obras" (Iluminuras) e "Lições de Literatura Francesa" (Imago).


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.