São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 1998.



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CRÍTICA
Autora explora total ambiguidade de Grace Marks

especial para a Folha

Nada mais fantástico do que a própria realidade, já dizia Dostoievski. Ora, se há algo digno de nota em "Alias Grace", nono romance da canadense Margaret Atwood, são os próprios fatos reais de que ele parte. As disposições ficcionais dos acontecimentos verídicos de que trata a obra. A imitação da arte pela vida.
Aliás, no caso, "verídico" não é um bom termo, já que tudo escapa à prova da verdade na real história da Grace em questão. "Vulgo, Grace", com vírgula, na tradução brasileira, seria para aumentar o efeito de insólito?
Acusada de participar do assassinato do fazendeiro Thomas Kinnear, em cuja casa servia como empregada, e de Mary Montgomery, governanta de Kinnear, grávida do patrão, Grace Marks, então com 16 anos, é condenada à morte, em Toronto, em 1843.
Em espetáculo público, o outro acusado, James McDermott, igualmente empregado de Kinnear, é enforcado, em novembro do mesmo ano. Enquanto Grace, talvez pela extrema juventude, talvez por parecer retardada, talvez por sua grande beleza -único dado aparentemente objetivo na história toda-, tem sua pena comutada para prisão perpétua.
De Grace Marks -vulgo Mary Whitney, como se fez chamar a célebre suposta criminosa, quando em fuga na companhia de McDermott, logo após os crimes- ninguém nunca soube nada ao certo, nada chegou a ser apurado.
E é desse vazio central que Atwood tira proveito, da impressionante multiplicação das "personas", da falta completa de rosto debaixo das máscaras. Agravada ainda pelo desaparecimento em Nova York, a partir de 1872, data em que a humilde filha de pedreiro irlandês foi perdoada. A menina, órfã de mãe, desnorteou a segunda metade do século 19 canadense.
Das muitas mulheres protagonistas dos romances de Atwood, cuja maior parte é traduzida no Brasil pela Marco Zero, como o recente "A Noiva Ladra", Grace, a dúbia, parece ter tudo para ser a mais perturbadora. Até porque, baseada nos documentos do processo, em arquivos de serviços psiquiátricos e jornais da época, em cartas e livros de história (como "Life in the Clearings", de Susanna Moodie, escrito em 1853), a autora, para nosso maior deleite, se compraz em complicar ainda mais as coisas, de saída impenetráveis. Dando a palavra, como faz, a Grace, que, fazendo livres associações a pedido de seu jovem psiquiatra, é a primeira a não saber de si.
Ou a não querer saber, como diria, pouco mais tarde, das histéricas, Freud, o inventor da ciência do inconsciente. Como para provar que não se pode conhecer o que quer uma mulher, Grace se diz amnésica ao longo do tratamento a que é submetida no Asilo de Lunáticos de Toronto, para onde é transferida da penitenciária local, na sequência dos acontecimentos. Ela está entrando, então, nos 30 anos. E estará na casa dos 40 anos nos Estados Unidos. E já temos, até aqui, três idades, não bastasse o xadrez de identidades.
Seria ela cúmplice de McDermott? Ou McDermott, seu cúmplice? Teria McDermott morrido no lugar da verdadeira criminosa? Ou estaria ela amargando a prisão por causa dele? Teria ela ajudado a golpear Kinnear e Nancy? Ou só Nancy? Ou só Kinnear? Seria ela movida por amor pelo patrão? Hipótese em que teria sido por ódio à governanta? Ou seria Kinnear a estar seduzido por Grace? Hipótese em que McDermott, secundado ou não pela acusada, teria agido por ódio a Kinnear, supondo que estivesse apaixonado por Grace? Que, por outra hipótese, teria lhe prometido seus favores, caso ele matasse em seu lugar? Uma vez que estava para ser despedida...
Inflamando uma opinião pública perfeitamente dividida, Grace é, para alguns, uma encarnação do demônio. É como tendem a vê-la os conservadores da época, que, aproveitando o ensejo, levam a peito denunciar o descalabro das classes inferiores. Mas é tida por inocente e, mais que isso, por anjo vitimado, pelos então denominados radicais. Sem falar que passa também por idiota para certa nosografia desses tempos imediatamente pré-freudianos, em que Lombroso vem inscrever sua fisiologia criminalística, e as instituições para patologias nervosas começam a se firmar.
Quanto a nós, leitores, somos levados por mãos hábeis à evidência de uma completa falta de saída. Encantados que quase ficamos com a inverossimilhança dessa heroína moderna, que rompeu com todas as regras de unidade da sua própria auto-representação. O encanto dessa verdadeira projeção no abismo humano, que só não é completo devido aos pequenos deslizes de estilo de nossa autora de best sellers. Que escreve coisas como essa, encontrável à página 137, em que o doutor Jordan, médico de Grace no asilo de lunáticos, socorre a senhora que lhe aluga um quarto e no momento passa mal. O médico inicia uma operação pela remoção da parte de cima da roupa: "(Ele) remexe pelas camadas de tecido e, finalmente, consegue cortar os laços do corpete com seu canivete de bolso, soltando um odor de água de violetas, folhas de outono e carne úmida".(!) (LTM)

Livro: Vulgo, Grace Autora: Margaret Atwood Lançamento: Marco Zero Quanto: R$ 29 (448 págs.)



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