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CRÍTICA
Autora explora total ambiguidade de Grace Marks
especial para a Folha
Nada mais fantástico do que a
própria realidade, já dizia Dostoievski. Ora, se há algo digno de
nota em "Alias Grace", nono romance da canadense Margaret Atwood, são os próprios fatos reais
de que ele parte. As disposições ficcionais dos acontecimentos verídicos de que trata a obra. A imitação da arte pela vida.
Aliás, no caso, "verídico" não é
um bom termo, já que tudo escapa
à prova da verdade na real história
da Grace em questão. "Vulgo,
Grace", com vírgula, na tradução
brasileira, seria para aumentar o
efeito de insólito?
Acusada de participar do assassinato do fazendeiro Thomas Kinnear, em cuja casa servia como
empregada, e de Mary Montgomery, governanta de Kinnear, grávida do patrão, Grace Marks, então com 16 anos, é condenada à
morte, em Toronto, em 1843.
Em espetáculo público, o outro
acusado, James McDermott,
igualmente empregado de Kinnear, é enforcado, em novembro
do mesmo ano. Enquanto Grace,
talvez pela extrema juventude, talvez por parecer retardada, talvez
por sua grande beleza -único dado aparentemente objetivo na história toda-, tem sua pena comutada para prisão perpétua.
De Grace Marks -vulgo Mary
Whitney, como se fez chamar a célebre suposta criminosa, quando
em fuga na companhia de McDermott, logo após os crimes- ninguém nunca soube nada ao certo,
nada chegou a ser apurado.
E é desse vazio central que Atwood tira proveito, da impressionante multiplicação das "personas", da falta completa de rosto
debaixo das máscaras. Agravada
ainda pelo desaparecimento em
Nova York, a partir de 1872, data
em que a humilde filha de pedreiro
irlandês foi perdoada. A menina,
órfã de mãe, desnorteou a segunda
metade do século 19 canadense.
Das muitas mulheres protagonistas dos romances de Atwood,
cuja maior parte é traduzida no
Brasil pela Marco Zero, como o recente "A Noiva Ladra",
Grace, a dúbia,
parece ter tudo
para ser a mais
perturbadora.
Até porque,
baseada nos
documentos
do processo,
em arquivos de
serviços psiquiátricos e
jornais da época, em cartas e
livros de história (como "Life in the Clearings", de Susanna Moodie,
escrito em 1853), a autora, para
nosso maior deleite, se compraz
em complicar ainda mais as coisas,
de saída impenetráveis. Dando a
palavra, como faz, a Grace, que,
fazendo livres associações a pedido de seu jovem psiquiatra, é a primeira a não saber de si.
Ou a não querer saber, como diria, pouco mais tarde, das histéricas, Freud, o inventor da ciência
do inconsciente. Como para provar que não se pode conhecer o
que quer uma mulher, Grace se diz
amnésica ao longo do tratamento a
que é submetida no Asilo de Lunáticos de Toronto, para onde é
transferida da penitenciária local,
na sequência dos acontecimentos.
Ela está entrando, então, nos 30
anos. E estará na casa dos 40 anos
nos Estados Unidos. E já temos,
até aqui, três idades, não bastasse o
xadrez de identidades.
Seria ela cúmplice de McDermott? Ou McDermott, seu cúmplice? Teria
McDermott
morrido no lugar da verdadeira criminosa? Ou estaria
ela amargando
a prisão por
causa dele? Teria ela ajudado
a golpear Kinnear e Nancy?
Ou só Nancy?
Ou só Kinnear?
Seria ela movida por amor
pelo patrão?
Hipótese em
que teria sido
por ódio à governanta? Ou seria Kinnear a estar
seduzido por Grace? Hipótese em
que McDermott, secundado ou
não pela acusada, teria agido por
ódio a Kinnear, supondo que estivesse apaixonado por Grace? Que,
por outra hipótese, teria lhe prometido seus favores, caso ele matasse em seu lugar? Uma vez que
estava para ser despedida...
Inflamando uma opinião pública
perfeitamente dividida, Grace é,
para alguns, uma encarnação do
demônio. É como tendem a vê-la
os conservadores da época, que,
aproveitando o ensejo, levam a
peito denunciar o descalabro das
classes inferiores. Mas é tida por
inocente e, mais que isso, por anjo
vitimado, pelos então denominados radicais. Sem falar que passa
também por idiota para certa nosografia desses tempos imediatamente pré-freudianos, em que
Lombroso vem inscrever sua fisiologia criminalística, e as instituições para patologias nervosas começam a se firmar.
Quanto a nós, leitores, somos levados por mãos hábeis à evidência
de uma completa falta de saída.
Encantados que quase ficamos
com a inverossimilhança dessa heroína moderna, que rompeu com
todas as regras de unidade da sua
própria auto-representação. O encanto dessa verdadeira projeção
no abismo humano, que só não é
completo devido aos pequenos
deslizes de estilo de nossa autora
de best sellers. Que escreve coisas
como essa, encontrável à página
137, em que o doutor Jordan, médico de Grace no asilo de lunáticos,
socorre a senhora que lhe aluga
um quarto e no momento passa
mal. O médico inicia uma operação pela remoção da parte de cima
da roupa: "(Ele) remexe pelas camadas de tecido e, finalmente,
consegue cortar os laços do corpete com seu canivete de bolso, soltando um odor de água de violetas,
folhas de outono e carne úmida".(!)
(LTM)
Livro: Vulgo, Grace
Autora: Margaret Atwood
Lançamento: Marco Zero
Quanto: R$ 29 (448 págs.)
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