São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2004

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RODAPÉ

Décio Pignatari recria colapso libertador de Machado de Assis

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma peça teatral sobre Machado de Assis, mas também um "storyboard" simultaneísta holográfico, interpenetrações de tempos e cenas comprimidos que se despreendem e ganham corpo-som-cheiro". Assim é "Céu de Lona", novo livro de Décio Pignatari.
Um dos criadores da poesia concreta, ensaísta com importantes estudos sobre semiótica, Pignatari vem canalizando sua invenção para a prosa experimental, como nos contos de "O Rosto da Memória", no romance "Panteros" e nos fragmentos memorialísticos de "Errâncias".
"Céu de Lona" se encaixa nessa vertente. Escrito na forma de diálogos, o livro se apresenta como uma "peça em 19 segmentos", ilustrada por desenhos de Maria Angela Biscaia e monotipias de Lyria Palombini (que trabalha sobre fotos de época). Mas também podemos lê-lo como entrecruzamento de vozes num espaço imaginário que rejeita a estrutura do romance convencional (um narrador que domina a cena, hierarquiza personagens, uniformiza a ação etc.).
Essa dispersão narrativa é indissociável do modo como Pignatari se apropria de seu tema: as metamorfoses da vida e da obra de Machado de Assis, a ruptura que transformou o escritor romântico de "Iaiá Garcia" no ácido romancista de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", que encena o colapso do Brasil escravista, o colapso das ilusões românticas e o colapso de si mesmo (na figura do defunto autor).
Um romance sobre Machado correria o risco de cair em determinismos psicológicos ou sociológicos, encerrando a trajetória do escritor numa seqüência causal de acontecimentos. Ao optar pela estrutura teatral, Pignatari inseriu esses acontecimentos numa espécie de esfera mítica, regida por aqueles simultaneísmos e "interpenetrações de tempos e cenas" que ele mesmo descreve na apresentação do livro.
O fio condutor da peça é o casamento de Machado com Carolina Augusta Xavier de Novais, e muitas das cenas são baseadas em episódios biográficos ou fazem citações de livros, crônicas e correspondências. O título, por exemplo, é extraído de uma frase escrita por Machado em carta a José de Alencar, sobre uma peça de Castro Alves: "Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul".
Também para Pignatari o tablado é pequeno e por isso rejeita a camisa-de-força da representação naturalista. Assim, enquanto Machado e Carolina conversam, numa banheira ou ao redor de um tabuleiro de xadrez, o espaço ficcional é invadido a todo momento por "streakers" que fazem proclamações, "personagens-personalidades" como o poeta Sousândrade, o crítico Sílvio Romero, o republicano Quintino Bocaiúva ou a princesa Isabel.
Corina (musa dos poemas de juventude de Machado, inspirada na musa homônima de Ovídio, poeta latino das "Metamorfoses") se materializa e faz um aborto num quarto de bordel -anunciando, por sua vez, a metamorfose de Carolina em mulher demoníaca, que celebra um pacto mefistofélico com o escritor.
É esse, aliás, o eixo de intersecção das várias camadas intertextuais de "Céu de Lona": Carolina entra na vida do Machado como uma chaga anti-romântica. Ela quebra suas ilusões de ascensão social ("Pertenço a uma sociedade que me expeliu. Você é um expelido que busca ingressar na sociedade.") e assume o "dever de curá-lo desse "morbus romanticus", especialmente através de doses constantes de aplicações eróticas e da crítica constante a essa superfetação da beleza amorosa".
Dentro desse registro alegórico, as famosas férias de Machado em Friburgo, em 1878 -de onde ele voltaria para o Rio de Janeiro com a idéia de escrever "Memórias Póstumas"-, são um rito de passagem, o ingresso definitivo do escritor numa negatividade libertadora, que será a marca de obras maduras como "Quincas Borba" e "Dom Casmurro".
"Alforriei todos os escravos que me escravizaram", conclui o Machado de Assis de Décio Pignatari -que está tão distante do romantismo quanto do realismo psicológico e das questões de identidade nacional ao qual costumamos identificá-lo.


Céu de Lona
    
Autor: Décio Pignatari
Editora: Travessa dos Editores
Quanto: R$ 50 (72 págs.)



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