São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 2005

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CINEMA

Com "Melinda e Melinda", Woody Allen volta ao drama

PEDRO GUIMARÃES
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE PARIS

Há quase 20 anos Woody Allen não dirigia um filme dramático. As últimas incursões do mais nova-iorquino e neurótico dos diretores pelos dramas profundos foram os bergmanianos "A Outra" e "Setembro", ambos do final da década de 80.
Agora, com "Melinda e Melinda", programado para estrear no Brasil no final de maio, Allen volta a se aventurar pelo seu gênero preferido. "Para cada drama, tive que fazer pelo menos cinco comédias", diz o diretor em entrevista ao jornal francês "Libération".
A França é, alias, um dos primeiros países a assistir ao 36º longa do diretor, antes mesmo dos EUA e da Inglaterra. Isso porque, a cada estréia de um novo filme de Woody Allen, os franceses se precipitam em massa para os cinemas, mesmo em filmes menores, como os recentes "Trapaceiros" e "Igual a Tudo na Vida", relativos sucessos de público na França.
Todo o amor declarado pelos franceses ao diretor é devolvido em dobro nos roteiros de Allen. Em "Dirigindo no Escuro", a obra de um diretor de cinema cego e incompreendido na América se revela um sucesso no outro lado do Atlântico. Já em "Melinda e Melinda" não faltam cenas rodadas em bistrôs tipicamente franceses e referências à cultura e ao modo de vida dos europeus.
O novo filme é uma das mais ousadas experiências formais do cinema recente de Woody Allen, que conta duas histórias paralelas sobre uma personagem com o mesmo nome -Melinda, a desconhecida atriz australiana Radha Mitchell-, imaginadas numa mesa de bar por dois dramaturgos de estilos opostos (um cômico, o outro dramático).
Isso não significa, no entanto, inventar uma nova linguagem narrativa. Nessa tragicomédia, Allen reforça e inova alguns clichês. Por um lado, continuam presentes os personagens que mais parecem metralhadoras de piadas, um alter ego do diretor. Por outro, saem de cena as constantes referências psicanalíticas e os diálogos sobre dificuldade de relacionamentos e incompatibilidade de sexos.
Entre suas duas Melindas, a mise-en-scène de Woody Allen manifesta abertamente sua preferência por uma delas. A Melinda cômica é uma jovem e atraente nova-iorquina do Upper East Side, que sofre por amor. Já a Melinda dramática, personagem mais interessante, é uma mãe impedida de ver seus filhos depois de ter matado o amante, por quem ela abandonou o marido.
Essa Melinda nada mais é do que uma atualização de outra personagem ícone da tragédia do século 20, a decadente dama sulista Blanche DuBois, criada por Tennessee Williams e imortalizada nas telas por Vivien Leigh em "Um Bonde Chamado Desejo" (Elia Kazan, 1951).
Movidas por um sentimento de fuga e de repressão, Blanche e Melinda aportam num universo a princípio confortável, mas que se revela mais hostil do que elas poderiam imaginar. Cansadas de se debaterem contra essa nova realidade dramática que as sufoca (perseguição do cunhado/surto nervoso, no caso de Williams; traição da melhor amiga/tentativa de suicídio, no de Allen), Melinda não tem outra solução senão se deixar esmagar pela câmera de Allen, assim como Kazan havia feito com Blanche 50 anos antes.
Nessa comédia de poucas risadas (ou drama de quase nenhum choro), Allen finalmente recupera um pouco da vitalidade que vinha lhe faltando nos últimos anos.


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