São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009

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Crítica/"Divisadero"

Ondaatje dribla regras e reinventa a vida

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nascido no Sri Lanka, criado na Inglaterra e radicado no Canadá, Michael Ondaatje é uma "avis rara" em meio à ficção contemporânea de língua inglesa. Tal singularidade não se deve somente ao nomadismo de sua formação, impulsionado pelas raízes familiares holandesas. Ao contrário de seus colegas, Ondaatje é, na essência, um poeta que também escreve narrativas, informação que "Divisadero", seu último romance, apenas confirma.
Fabuladores pragmáticos que não permitem concessões às peripécias da linguagem, colegas britânicos de Ondaatje tais como Ian McEwan, Julian Barnes ou até mesmo mais novos como Zadie Smith têm se notabilizado por seu diálogo com a tradição ficcional inglesa do século 19. Trata-se de contradição igualmente notável: se comparados a expoentes da geração anterior (por exemplo, Anthony Burgess, J.G. Ballard ou Alasdair Gray), esses autores exalariam um inconfundível bodum de naftalina. Longa vida às escassas exceções que ousam driblar as regras: em seus romances, Ondaatje não só tem feito vista grossa ao esquema começo-meio-fim como tem deixado de lado a tradicional divisão de gêneros, abdicando dos cerebralismos vazios e tediosos.
Afinal, a vida dos dias atuais não parece mesmo um folhetim de Dickens, e até a morte parece ser um final -reparem- cada vez mais arbitrário.

Amores e violência
"Divisadero" pode ser visto como um amálgama de destinos e de amores interrompidos pela violência. Assim como as linhas da vida na palma das mãos dos personagens envolvidos, porém, tudo prossegue em fluxos paralelos e permanece fluindo em ramificações impensadas. Anna e Claire são irmãs e vivem com o pai na zona rural do norte da Califórnia nos últimos anos do século passado. Em sua companhia, encontra-se Coop, rapaz cujos pais foram assassinados.
Anna, única filha verdadeira, envolve-se com o irmão adotado, e o ato furioso provocado por essa paixão termina por determinar a sina de toda a família. Coop se torna um hábil jogador de cartas a vagar pela Costa, aplicando golpes. Claire, a manquinha, acerta o passo, transformando-se em procuradora pública em San Francisco. E Anna desaparece na França atrás das pegadas do poeta francês Lucien Segura, a quem procura biografar. Ela se muda para a antiga casa de fazenda antes habitada pelo poeta. Ao final de "Divisadero", quando o leitor conclui que não haverá mão a atar novamente os nós desfeitos pelo destino, as ressonâncias da biografia de Segura servirão de elo e de consolo.
As habilidades poéticas de Michael Ondaatje não se restringem ao poder de sua visualidade (numa cena, Segura retorna da Primeira Guerra a cavalo, "olhando para a brancura do próprio hálito, para convencer a si mesmo de que estava vivo"), mas à sua capacidade ética de reinventar a vida e suas vicissitudes. Os personagens de "Divisadero" são infinitos e deixam de habitar o livro para ocupar o leitor. Não é pouco, numa época em que a existência de pessoas reais cada vez mais se tinge de falsidade.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).


DIVISADERO
Autor: Michael Ondaatje
Tradução: Augusto Pacheco Calil
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 52 (312 págs.)
Avaliação: ótimo



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