|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Divisadero"
Ondaatje dribla regras e reinventa a vida
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nascido no Sri Lanka,
criado na Inglaterra e
radicado no Canadá,
Michael Ondaatje é uma "avis
rara" em meio à ficção contemporânea de língua inglesa. Tal
singularidade não se deve somente ao nomadismo de sua
formação, impulsionado pelas
raízes familiares holandesas.
Ao contrário de seus colegas,
Ondaatje é, na essência, um
poeta que também escreve narrativas, informação que "Divisadero", seu último romance,
apenas confirma.
Fabuladores pragmáticos
que não permitem concessões
às peripécias da linguagem, colegas britânicos de Ondaatje
tais como Ian McEwan, Julian
Barnes ou até mesmo mais novos como Zadie Smith têm se
notabilizado por seu diálogo
com a tradição ficcional inglesa
do século 19. Trata-se de contradição igualmente notável: se
comparados a expoentes da geração anterior (por exemplo,
Anthony Burgess, J.G. Ballard
ou Alasdair Gray), esses autores exalariam um inconfundível bodum de naftalina.
Longa vida às escassas exceções que ousam driblar as regras: em seus romances, Ondaatje não só tem feito vista
grossa ao esquema começo-meio-fim como tem deixado de
lado a tradicional divisão de gêneros, abdicando dos cerebralismos vazios e tediosos.
Afinal, a vida dos dias atuais não parece mesmo um folhetim de Dickens, e até a morte parece ser
um final -reparem- cada vez
mais arbitrário.
Amores e violência
"Divisadero" pode ser visto
como um amálgama de destinos e de amores interrompidos
pela violência. Assim como as
linhas da vida na palma das
mãos dos personagens envolvidos, porém, tudo prossegue em
fluxos paralelos e permanece
fluindo em ramificações impensadas. Anna e Claire são irmãs e vivem com o pai na zona
rural do norte da Califórnia nos
últimos anos do século passado. Em sua companhia, encontra-se Coop, rapaz cujos pais
foram assassinados.
Anna, única filha verdadeira,
envolve-se com o irmão adotado, e o ato furioso provocado
por essa paixão termina por determinar a sina de toda a família. Coop se torna um hábil jogador de cartas a vagar pela
Costa, aplicando golpes. Claire,
a manquinha, acerta o passo,
transformando-se em procuradora pública em San Francisco.
E Anna desaparece na França atrás das pegadas do poeta
francês Lucien Segura, a quem
procura biografar. Ela se muda
para a antiga casa de fazenda
antes habitada pelo poeta. Ao
final de "Divisadero", quando o
leitor conclui que não haverá
mão a atar novamente os nós
desfeitos pelo destino, as ressonâncias da biografia de Segura
servirão de elo e de consolo.
As habilidades poéticas de
Michael Ondaatje não se restringem ao poder de sua visualidade (numa cena, Segura retorna da Primeira Guerra a cavalo, "olhando para a brancura
do próprio hálito, para convencer a si mesmo de que estava vivo"), mas à sua capacidade ética
de reinventar a vida e suas vicissitudes. Os personagens de
"Divisadero" são infinitos e
deixam de habitar o livro para
ocupar o leitor. Não é pouco,
numa época em que a existência de pessoas reais cada vez
mais se tinge de falsidade.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra).
DIVISADERO
Autor: Michael Ondaatje
Tradução: Augusto Pacheco Calil
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 52 (312 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Livro conta detalhes dos coadjuvantes Próximo Texto: Trecho Índice
|