São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009

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Crítica/ "Ver e Poder"

Ensaios questionam consumo de imagens

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Para o espectador que concebe ir ao cinema como um entretenimento descompromissado, a leitura de "Ver e Poder" equivale à perda da inocência. Este conjunto de ensaios insiste em abolir qualquer forma de olhar imagens no mundo atual que não a do comprometimento.
Seu autor, o cineasta francês Jean-Louis Comolli, pertence a uma geração que quis ver no cinema um instrumento de transformação, senão do mundo, ao menos de sua percepção. Com o fim das utopias, inclusive desta que acreditou no poder revolucionário dos filmes, resta ao autor usar seu talento ímpar para jogar água na poção mágica do encantamento, desafinar o coro dos contentes, em suma, mostrar que não há nada de inocente na compulsão por produzir e consumir imagens.
Comolli parte da constatação da generalização do espetáculo como forma de ser e estar no mundo, segundo a previsão de seu conterrâneo Guy Debord, cujo efeito sobre manifestações artísticas teria sido o fim de sua potência de subversão. Assim, o cinema teria sido historicamente "produto e maior ator da roteirização do mundo".
Contrário a essa condenação sumária, prefere ver no cinema a "ferramenta que permite desmontar as construções espetaculares" graças ao poder do qual o espectador é investido na sala escura. Vítimas dessa situação no cinema é que aprendemos que a imagem resulta de um poder de controle, que Comolli faz ressaltar na exploração sistemática que propõe do conceito de mise-en-scène.
Tal "consciência" depende da distinção que o autor faz entre duas concepções do espectador: "Uma que o submete ao aperfeiçoamento incessante do engodo e outra que o deseja consciente e ativo no trabalho de uma escritura". Trata-se de enfatizar ao espectador, em mais de 20 ensaios, "um lugar estratégico, ligado às relações de força em jogo nas sociedades capitalistas, um lugar político".

BBB e o "risco do real"
O privilégio das análises recai sobre o documentário (ou a emergência do vigor desta forma) e as ficções que se põem "sob o risco do real". Os ensaios sob este prisma são valiosos para especialistas e para quem só consome tais imagens, mas se inquieta com a intensidade com que atacam os cérebros.
Muito mais furiosa, e, logo, incômoda, é a abordagem que lança aos avanços da telerrealidade, cujo emblema encontra-se em espetáculos do tipo BBB. "É preciso ver aí", alerta, "o aperfeiçoamento experimental de um novo tipo de espectador". Espectador que dispõe de um poder de vida e morte, de decidir se tal concorrente fica no jogo ou se será eliminado (termo que, sabemos, não comporta mais nenhuma suposta inocência, não pelo menos depois do Holocausto).
Nem adianta alegar que apenas buscamos de modo inocente o puro divertimento. Nesse jogo não existe a opção.


VER E PODER - A INOCÊNCIA PERDIDA: CINEMA, TELEVISÃO, FICÇÃO, DOCUMENTÁRIO
Autor: Jean-Louis Comolli (org. de César Guimarães e Ruben Caixeta)
Tradução: Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira e Ruben Caixeta
Editora: Humanitas
Quanto: R$ 61 (373 págs.)
Avaliação: ótimo



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