São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ LITERÁRIO

Poesia de olhos vazados


Quando a poesia é boa, como a de Pádua Fernandes, a discussão sobre arte e engajamento se desloca


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

PRECEDIDO DE elogios de fontes variadas, cai em minhas mãos "Cinco Lugares da Fúria", mais recente livro do poeta Pádua Fernandes. A sensação é de espanto.
Trata-se de poesia pública, sem desequilíbrio entre os polos. A ira santa que atravessa as cinco sessões do volume não sacrifica a invenção, a linguagem não ofusca a matéria escura -urbana, brasileira e desencantada- a que dá forma. Quando a poesia é boa, a discussão sobre arte e engajamento se desloca.
Este é o primeiro efeito do livro, repelindo rótulos estéticos ou ideológicos. Se alguns torcem o nariz para o Ferreira Gullar mais engajado e preferem a ousadia de "A Luta Corporal", poucos se perguntam se a náusea que acompanha "A Rosa do Povo" é de esquerda (e é) ou direita. Como o "Antepasso" adverte, o leitor de "Cinco Lugares da Fúria" percorre um mapa, um mundo substituto, não as próprias ruas.
Mas o mapa "morde, é muito feroz" e guarda memória das violências que traçam seu contorno. Está lá o espectro da voz "comendadora" das elites, fundiária, em "De como o Senhorio as Suas Vastas Glebas e Garbos a Seus Inquilinos" (lembrando a poesia dramática de João Cabral, no seu "Auto do Frade"), politiqueira, em "Erosão e Ágora", intelectual, em "Galeria".
Estão lá as vozes tartamudas dos meninos aboletados nas lajes das periferias armadas ("Cosmovisão da Pá"), dos moradores de rua e dos cortiços ("Por Dentro"), dos que buscam alternativa virando as costas ao país ("Doce Anto em Terra Alheia, Quem Tão Alheio Está de Si?"), dos que se escondem atrás dos muros ("Passos Subterrâneos do Vôo").
Está lá a dissecção de um civismo cínico e um país-do-futuro sem lei, em "Ventre Seco dos Calendários". Pádua Fernandes, professor de direito além de poeta, não poupa o sorriso retórico e espertalhão da sabedoria jurídica, que sabe torcer a lei e não confunde ilegalidade de rico com o crime do pobre, o de existir.
A pluralidade de formas e vozes, multiplicação dramatizada de absurdos cotidianos, experimenta muitas vezes no volume saltos simbólicos extraordinários, inusitados, em poemas como "Do Único Senhor dos Senhorios: Glebas, Ofícios, Céus, Casas e Frutos". Nele, fala um cupim, agente de corrosão e crítica possível, rasgando a página verticalmente e produzindo o vazio e o nada em meio ao lixo e horror contemporâneos que dominam o livro. A imagem remete menos à leveza da pulga parabólica de Murilo Mendes que à estranheza inconcessiva do áporo drummondiano.
Este vazio onívoro, presente em tantas passagens do livro, feito de vida petrificada ou mutilada ("vocação mineral dos ocos" ou "língua pródiga dos decapitados"), domina os olhos do poeta. Vazados pela realidade e sem descanso, eles seguem pelas calçadas, em nosso nome. A vista, de arrepiar, vale a visita.


CINCO LUGARES DA FÚRIA
Autor: Pádua Fernandes
Editora: Hedra
Quanto: R$ 20 (114 págs.)
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Livros / Vitrine
Próximo Texto: Crítica/"Cidadezinhas": Updike narra o ocaso burguês
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.