São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009

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Crítica/"Cidadezinhas"

Updike narra o ocaso burguês

"Cidadezinhas" parte de retrato do americano médio para colocar em questão a alienação contemporânea

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um trecho no novo romance de John Updike, que se arrasta para descrever a vida de um programador de computadores dos anos 30 à atualidade, diante do qual tudo, inclusive esse ar perfunctório, parece adquirir sentido -e não se trata aqui de certas revelações, que o narrador guarda para o final.
Até então vínhamos acompanhando Owen Mackenzie desde sua infância e adolescência pobres no interior da Pensilvânia; sua formação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts; seu casamento com a bela da turma, Phyllis Goodhue; sua ascensão no então incipiente mundo da computação; e, sobretudo, seus casos extraconjugais iniciados na década de 60.
A perspectiva da narrativa de "Cidadezinhas" é a do presente, quando Owen, aposentado, bem de vida, está casado com a carola Julia, e não parece mais disposto a correr atrás de rabos de saia. Quando não está pintando ou indo a festinhas, dedica-se às tarefas aparentemente plácidas de decifrar seus sonhos e relembrar o passado.
É esse passado que explica a razão das segundas núpcias de Owen (junto de sua mudança de atitude), mas só bem adiante. Até então, o leitor pode se perguntar por que Updike, a despeito do esmero peculiar empenhado, dedicou-se tanto para produzir outro retrato do americano médio e de suas intrigas suburbanas.

Cartões perfurados
A chave pode residir na atuação do protagonista no campo da informática, que o narrador acompanha -desde quando os computadores funcionavam à base de filtros, cartões perfurados e dezenas de milhares de válvulas- com quase tanto zelo quanto aquele com que esquadrinha suas aventuras eróticas.
E pode residir também na cena em que Owen e Phyllis estão na casa de um amigo ilustrador, e este lança uma imprecação sincera, mas um pouco ingênua, contra os computadores. Owen argumenta que são apenas mecanismos, como a máquina a vapor e o automóvel. E o antagonista retruca que todas essas máquinas mudaram o ritmo da vida, acelerando-a a tal ponto que não se vive mais.
"Então, se a gente não vive, o que é que a gente faz?", questiona Owen. É essa questão, instaurada no epicentro do capitalismo contemporâneo e em face da mais recente revolução tecnológica destinada a acirrar a alienação do ser humano, que o romance procura enfrentar. A resposta não chega fácil nem soa animadora. Incapaz de se livrar da culpa, que o visita em seus sonhos, Owen rende-se às amenidades do ocaso burguês como antes se entregara às relações extraconjugais.
Estas faziam parte de uma inquietação que ele não soube resolver e cujo derivativo provou-se ilusório, mais um item na compulsão do consumo que envolve o abismo árido da inconsciência. No fim, só lhe resta esperar que esse nada termine por engolfá-lo.

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP


CIDADEZINHAS
Autor: John Updike
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 55 (368 págs.)
Avaliação: bom



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