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Crítica/"Cidadezinhas"
Updike narra o ocaso burguês
"Cidadezinhas" parte de retrato do americano médio para colocar em questão a alienação contemporânea
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há um trecho no novo
romance de John Updike, que se arrasta
para descrever a vida de um
programador de computadores
dos anos 30 à atualidade, diante
do qual tudo, inclusive esse ar
perfunctório, parece adquirir
sentido -e não se trata aqui de
certas revelações, que o narrador guarda para o final.
Até então vínhamos acompanhando Owen Mackenzie desde sua infância e adolescência
pobres no interior da Pensilvânia; sua formação no Instituto
de Tecnologia de Massachusetts; seu casamento com a bela
da turma, Phyllis Goodhue; sua
ascensão no então incipiente
mundo da computação; e, sobretudo, seus casos extraconjugais iniciados na década de 60.
A perspectiva da narrativa de
"Cidadezinhas" é a do presente,
quando Owen, aposentado,
bem de vida, está casado com a
carola Julia, e não parece mais
disposto a correr atrás de rabos
de saia. Quando não está pintando ou indo a festinhas, dedica-se às tarefas aparentemente
plácidas de decifrar seus sonhos e relembrar o passado.
É esse passado que explica a
razão das segundas núpcias de
Owen (junto de sua mudança
de atitude), mas só bem adiante. Até então, o leitor pode se
perguntar por que Updike, a
despeito do esmero peculiar
empenhado, dedicou-se tanto
para produzir outro retrato do
americano médio e de suas intrigas suburbanas.
Cartões perfurados
A chave pode residir na atuação do protagonista no campo
da informática, que o narrador
acompanha -desde quando os
computadores funcionavam à
base de filtros, cartões perfurados e dezenas de milhares de
válvulas- com quase tanto zelo
quanto aquele com que esquadrinha suas aventuras eróticas.
E pode residir também na cena em que Owen e Phyllis estão
na casa de um amigo ilustrador,
e este lança uma imprecação
sincera, mas um pouco ingênua, contra os computadores.
Owen argumenta que são apenas mecanismos, como a máquina a vapor e o automóvel. E
o antagonista retruca que todas
essas máquinas mudaram o ritmo da vida, acelerando-a a tal
ponto que não se vive mais.
"Então, se a gente não vive, o
que é que a gente faz?", questiona Owen. É essa questão, instaurada no epicentro do capitalismo contemporâneo e em face da mais recente revolução
tecnológica destinada a acirrar
a alienação do ser humano, que
o romance procura enfrentar.
A resposta não chega fácil
nem soa animadora. Incapaz de
se livrar da culpa, que o visita
em seus sonhos, Owen rende-se às amenidades do ocaso burguês como antes se entregara
às relações extraconjugais.
Estas faziam parte de uma
inquietação que ele não soube
resolver e cujo derivativo provou-se ilusório, mais um item
na compulsão do consumo que
envolve o abismo árido da inconsciência. No fim, só lhe resta esperar que esse nada termine por engolfá-lo.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
CIDADEZINHAS
Autor: John Updike
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 55 (368 págs.)
Avaliação: bom
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