São Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

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Ambicioso, Allen faz "Ponto Final" decolar só em sua parte policial

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Uma parte de Woody Allen, todos sabem, bem que gostaria de ser européia. Essa parte, que ocupa uns 75% de seu ser, nos últimos anos tem tido de se contentar com Nova York e o "nova-iorquismo" do cineasta.
Em "Ponto Final - Match Point", que estréia hoje no país, Woody, como que voltando aos anos 80, encosta a comédia e recupera a ambição -com vantagens e desvantagens. Ele vai a Londres, isto é, a uma série de signos de cultura e finesse que, ali, nem parecem essas idéias fora do lugar que o autor costuma atribuir aos intelectuais americanos (e um tanto pedantes) de seus filmes.
A história de Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers) tem Dostoiévski, ópera, museus e galerias -até cinema. Nascido pobre e em Dublin, Chris é o sujeito tenaz que prosperou como tenista profissional menos do que o necessário para se tornar uma estrela, mas o suficiente para, hoje, na condição de ex-tenista, ser aceito na alta roda londrina e aproximar-se de Chloe (Emily Mortimer), a herdeira rica, simpática e um tanto insossa com quem vai casar.
Mas a origem parece chamá-lo na pessoa de Nola Rice (Scarlett Johansson), americana sensual, um tanto grosseira e muito atraente, que realmente o inflama. E Nola é, quando o filme começa, a futura cunhada de Chris -está noiva de Tom Hewett (Matthew Goode), irmão de Chloe.
A história é um tanto intrincada, desigual, comporta vários tons, evoluindo com franqueza para o filme policial "noir" no terço final -a parte mais bem-sucedida do filme. E por que será ela a parte mais bem-sucedida? Talvez porque nesse momento entre num registro bem americano e deixe a Europa e sua cultura um pouco sossegadas.
Essa parte policial amarra os grandes temas do filme, como a idéia manifestada por Chris de vivermos num mundo trágico, em que o acaso é peça central da existência. Ele é também o homem que procura proteger a família de todos os males que possam atingi-la. É ainda, operisticamente, alguém que corre em busca de sua perda e corteja o mal com a mesma intensidade que busca ascender socialmente. (Fora isso, como em alguns Woody Allens, está envolvido num triângulo amoroso um tanto incestuoso).
Tamanha amplitude de personalidade curiosamente não beneficia o conjunto do filme, por uma série de razões, a começar pelo fato de que os demais personagens parecem antes de tudo apêndices parciais de suas contraditórias ambições e só vivem o indispensável para gravitar em torno dele.
Em segundo lugar porque, à força de ser tentacular, o caráter de Chris oscila entre a frieza demoníaca e a paixão adolescente, conforme convenha ao roteiro.
Talvez por isso mesmo, é quando o filme se torna um franco policial, em que essas coisas perdem importância, que Allen coloca o espectador em posição de torcer pelo personagem sinistro -assim como um Billy Wilder fizera em "Pacto de Sangue"-, e o faz com desenvoltura e graça.
Mesmo quem notar alguma falta de rigor no fechamento da trama não lhe poderá condenar por falta de coerência: tudo está nas mãos do acaso, como sustenta o cínico Chris Wilton. E, no fim das contas, mesmo que o lado europeizante o atrapalhe, Allen faz um filme que se assiste com prazer -como é, aliás, de seu feitio.


Avaliação:   

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