São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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BIA ABRAMO

Os novos bezerros de três cabeças


Em vez de aceitar sua esquisitice ou procurar ajuda, o sujeito vai lá e procura a televisão

O SUJEITO tem 40 anos e só come pizza e batatas fritas industrializadas. Em vez de seguir em frente com sua esquisitice ou de procurar um profissional de saúde, o sujeito vai lá e procura um programa de televisão.
A família não aguenta a cachorra que late o tempo todo, estraçalha a correspondência antes que chegue a uma mão humana, dorme na cama do casal e acorda mais vezes à noite do que um bebê com cólicas. Livraram-se da cachorra, chamaram a carrocinha? Não, apelaram para um programa de TV.
O cara dá para o seu cachorro todas as guloseimas que ele consome; ao final de um certo tempo, homem e cachorro estão inapelavelmente gordos. De novo, a solução é a mesma: vamos para a frente das câmeras, participar de um reality show cujo objetivo é emagrecer ao mesmo tempo homem e cão.
Há gosto para tudo neste mundo, inclusive para se exibir no mais alto grau da sua miséria pessoal, e a televisão está aí para isso mesmo. Todos os casos acima são de programas do GNT -"Viciados em Comer Mal", "Ou Eu ou o Cachorro" e "Meu Cão É Tão Gordo Quanto Eu".
É uma fórmula matadora -combina o reality show com a exposição de aberrações. Só que, ao contrário dos bezerros de três cabeças dos circos, esse novo mundo grotesco tem laços de semelhança poderosos com a chamada normalidade.
A indulgência consigo mesmo, com cães, com crianças; a dificuldade à beira da incapacidade de adotar disciplinas de interdição e contenção diante do consumo, das paixões e da demanda desorganizada de um outro, por exemplo, são traços da cultura contemporânea. Assim, ao mesmo tempo em que os espectadores podem se distanciar quando esses traços se tornam sulcos, podem simpatizar com aqueles comportamentos, uma vez que já estiveram, muitas vezes, quase lá.
Esses reality shows "terapêuticos", ou seja, aos quais as pessoas acorrem em busca de uma espécie de cura, estão se transformando num tipo à parte de espetáculo.
Incluam-se aí coisas do tipo "Super Nanny", "Inspetores do Sexo", "Você É o que Você Come", e tem-se todo um universo de programas baseado no trinômio bizarro/tortura terapêutica/ redenção diante das câmeras.
Mais do que o exibicionismo, elemento número um de qualquer reality, nessa modalidade o que parece mover essa gente a procurar a TV -e não o médico, o padre, as drogas ou a aceitação zen-, face a sua esquisitice fora de controle, é a possibilidade de passar por uma espécie de calvário feito de vergonha e culpa, mas com final "normal" -e, portanto, feliz.

biabramo.tv@uol.com.br


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