São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 2005

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A partir de amanhã, mostra em Salvador lança olhar menos romântico sobre o continente africano

Atlântico negro

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em uma das línguas faladas em Angola, o quimbundo, a palavra calunga tem dois significados. Por um lado é mar; por outro, calunga é abismo e mistério.
Continente separado do nosso por um só oceano, a África é também um grande "calunga" mesmo para um Brasil de tantos de seus descendentes. E é para "descalunguizar" essa relação que começa amanhã na mais africana das cidades d'além África um festival multicultural inédito.
A primeira edição da Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, com artes plásticas, fotografia, cinema e um ciclo de debates, reúne em Salvador artistas e intelectuais de mais de 15 países.
Um feixe de laser, que parte de um antigo entreposto de escravos na costa baiana e segue quilômetros de noite e de mar adentro em direção ao continente africano, é o pontapé inicial deste evento que procura fazer do Atlântico uma grande Rio-Niterói.
O laser do brasileiro Daniel Lima se perde no meio do escuro do mar. Mas, em outros escuros de Salvador, a Pan-Africana encontra mais diversos mares.
No Museu de Arte Moderna da Bahia, o chamado Solar do Unhão, o veterano fotógrafo Mario Cravo Neto monta a sua maior instalação até hoje com imagens de ondas em movimento projetadas em paredes de oito metros.
As águas salgadas também margeiam as instalações do angolano António Ole, que trabalha com elementos como objetos encontrados ao acaso no Atlântico.
Da terra firme aportam em Salvador ainda instalações da cubana Maria Magdalena Campos-Pons, que discute as tradições e memórias dos filhos caribenhos da diáspora negra, e fotografias de Eustáquio Neves, que também procura voltar suas lentes para as identidade possíveis dos afro-descendentes.
A identidade é o RG da questão. A videoartista e curadora Solange Farkas, criadora e diretora do evento, diz que o traço comum que percorre de costa a costa a programação da Mostra Pan-Africana é a busca que filhos da "diáspora negra" fazem de suas identidades.
"Buscamos os olhares menos românticos de uma África ancestral", conta Farkas. "É importante que isso seja feito aqui em Salvador, onde existe uma visão muito arraigada de uma África quase sacralizada, estagnada em uma tradição de 300 anos atrás."
Criadora e diretora há 15 anos do Videobrasil, ela sublinha a importância da projeção em Salvador de 17 filmes africanos, pescados por ela das suas muitas incursões ao principal evento cinematográfico do continente, o Fespaco, realizado a cada dois anos em Burkina Faso.
Segundo ela, a produção africana, antes marcadamente ingênua, está se sofisticando, crescendo muito ("Burkina Faso produz mais filmes hoje do que o Brasil") e está no centro da mira dos festivais da Europa e dos EUA.
Um dos destaques recentes do cinema d'além-mar será exibido no sábado na sala Walter Silveira. Na platéia da première brasileira de "En Attendant le Bonheur - "Heremakono" estará Abderrahmane Sissako, premiado diretor do filme de 2003.
O cineasta do Mali é uma das atrações de outro dos braços da mostra Pan-Africana -que propositalmente deixou de lado o foco mais comum nas relações afro-brasileiras, a música.
Sissako integra o movimentado programa de debates que acontecerá no sábado e no domingo em dois espaços de Salvador.
Trocarão palavras escritores como o angolano José Eduardo Agualusa (já conhecido no Brasil), pesquisadoras como a americana Zita Nunes e o haitiano Laënnec Hurbon.
São abordagens pouco óbvias as que serão postas na mesa. A americana Cheryl Finley, por exemplo, apresentará sua pesquisa sobre "turismo de raízes", tipo de excursão cada vez mais comum nos Estados Unidos em que afro-descendentes viajam para conhecer os locais de onde partiram seus ancestrais.
Pouco estereotipadas também são as imagens de uma exposição de fotografia que tem como base uma seção do festival Bamako, do Mali, um dos principais eventos de arte da África. Estarão em Salvador 47 imagens feitas pela delegação senegalesa da mostra.


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