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A partir de amanhã, mostra em Salvador lança olhar menos romântico sobre o continente africano
Atlântico negro
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em uma das línguas faladas em
Angola, o quimbundo, a palavra
calunga tem dois significados. Por
um lado é mar; por outro, calunga
é abismo e mistério.
Continente separado do nosso
por um só oceano, a África é também um grande "calunga" mesmo para um Brasil de tantos de
seus descendentes. E é para "descalunguizar" essa relação que começa amanhã na mais africana
das cidades d'além África um festival multicultural inédito.
A primeira edição da Mostra
Pan-Africana de Arte Contemporânea, com artes plásticas, fotografia, cinema e um ciclo de debates, reúne em Salvador artistas e
intelectuais de mais de 15 países.
Um feixe de laser, que parte de
um antigo entreposto de escravos
na costa baiana e segue quilômetros de noite e de mar adentro em
direção ao continente africano, é
o pontapé inicial deste evento que
procura fazer do Atlântico uma
grande Rio-Niterói.
O laser do brasileiro Daniel Lima se perde no meio do escuro do
mar. Mas, em outros escuros de
Salvador, a Pan-Africana encontra mais diversos mares.
No Museu de Arte Moderna da
Bahia, o chamado Solar do
Unhão, o veterano fotógrafo Mario Cravo Neto monta a sua maior
instalação até hoje com imagens
de ondas em movimento projetadas em paredes de oito metros.
As águas salgadas também margeiam as instalações do angolano
António Ole, que trabalha com
elementos como objetos encontrados ao acaso no Atlântico.
Da terra firme aportam em Salvador ainda instalações da cubana Maria Magdalena Campos-Pons, que discute as tradições e
memórias dos filhos caribenhos
da diáspora negra, e fotografias de
Eustáquio Neves, que também
procura voltar suas lentes para as
identidade possíveis dos afro-descendentes.
A identidade é o RG da questão.
A videoartista e curadora Solange
Farkas, criadora e diretora do
evento, diz que o traço comum
que percorre de costa a costa a
programação da Mostra Pan-Africana é a busca que filhos da
"diáspora negra" fazem de suas
identidades.
"Buscamos os olhares menos
românticos de uma África ancestral", conta Farkas. "É importante
que isso seja feito aqui em Salvador, onde existe uma visão muito
arraigada de uma África quase sacralizada, estagnada em uma tradição de 300 anos atrás."
Criadora e diretora há 15 anos
do Videobrasil, ela sublinha a importância da projeção em Salvador de 17 filmes africanos, pescados por ela das suas muitas incursões ao principal evento cinematográfico do continente, o Fespaco, realizado a cada dois anos em
Burkina Faso.
Segundo ela, a produção africana, antes marcadamente ingênua,
está se sofisticando, crescendo
muito ("Burkina Faso produz
mais filmes hoje do que o Brasil")
e está no centro da mira dos festivais da Europa e dos EUA.
Um dos destaques recentes do
cinema d'além-mar será exibido
no sábado na sala Walter Silveira.
Na platéia da première brasileira
de "En Attendant le Bonheur
- "Heremakono" estará Abderrahmane Sissako, premiado diretor
do filme de 2003.
O cineasta do Mali é uma das
atrações de outro dos braços da
mostra Pan-Africana -que propositalmente deixou de lado o foco mais comum nas relações afro-brasileiras, a música.
Sissako integra o movimentado
programa de debates que acontecerá no sábado e no domingo em
dois espaços de Salvador.
Trocarão palavras escritores como o angolano José Eduardo
Agualusa (já conhecido no Brasil), pesquisadoras como a americana Zita Nunes e o haitiano
Laënnec Hurbon.
São abordagens pouco óbvias as
que serão postas na mesa. A americana Cheryl Finley, por exemplo, apresentará sua pesquisa sobre "turismo de raízes", tipo de
excursão cada vez mais comum
nos Estados Unidos em que afro-descendentes viajam para conhecer os locais de onde partiram
seus ancestrais.
Pouco estereotipadas também
são as imagens de uma exposição
de fotografia que tem como base
uma seção do festival Bamako, do
Mali, um dos principais eventos
de arte da África. Estarão em Salvador 47 imagens feitas pela delegação senegalesa da mostra.
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