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FABIO DE SOUZA ANDRADE
Sendo Horace Catskill
Na naturalidade do narrador, há algo de cosmopolitismo poseur que estaca na superfície das aparências
POLIMORFO SIM, perverso sim,
Horace Catskill é um anti-herói pós-moderno. Em sua falta
de determinações, homem sem qualidades, lembra Zelig, o homem-camaleão de Woody Allen. A diferença
é que o protéico HC -protagonista
de "O Homem que Não Gostava de
Beijos", primeira coletânea de contos do jornalista Edward Pimenta-
não se limita a descartar, por mimetismo, tiques e personalidade.
Quando se reinventa, troca de pele,
ressurgindo, aos saltos aleatórios,
faceiro e safado, como sintoma e retrato de sua(s) época(s). HC não faz
caso de tempo ou espaço.
Em suas reaparições, contudo,
não escapa de um roteiro mais ou
menos estrito dos mitos da cultura
de massas contemporânea: as coxas
de Madonna, as narinas de Michael
Jackson, o politicamente correto
nas universidades, ácido e sexo em
profusão, nos anos 1960 (e sempre),
terroristas e assassinos em série,
pornografia. Pode ser o clássico soldado japonês que, distraído, perdeu
o anúncio do fim da guerra, o assassino frustrado do papa, um bibliotecário que trafica o acervo de uma biblioteca pública em proveito próprio ou o desconhecido que contamina com o HIV uma rainha do sexo
explícito.
O ponto de vista errático -à maneira de Julian Barnes que, mesclando história e ficção, para contar
a "História do Mundo em 10 Capítulos e Meio", alterna, por exemplo, as
impressões de um cupim embarcado na arca de Noé com a crise mística de um astronauta que pisou a
Lua- se equilibra sobre um fascínio
pelo diário da corte. Os aspectos grotescos e variados do presente são bebidos na fonte, o umbigo (americano) do mundo, e as referências à periferia (a satisfação sádica dos senhores de escravos, o acanhamento
provinciano do enterro de um boxeur argentino) aparecem, econômicas, engolidas pela luz ofuscante
da matriz.
Na naturalidade do narrador,
imune aos choques e às surpresas
das extravagâncias, há algo de cosmopolitismo poseur que estaca na
superfície brilhante das aparências,
circo de aberrações ou ciranda de
opulência. Porque Pimenta, promissor, conhece seu ofício, escreve bem
e constrói com habilidade cada uma
das fachadas para HC (o excessivo é
tema e não se transmite ao estilo,
enxuto e eficiente no humor verbal),
o livro não se esgota no mero divertimento.
Mas fica a pergunta se, pela mesma razão, o virtuosismo não ganha
um primeiro plano indevido, em
seus ecos de Will Self (o soldado japonês é colonizado por uma miniatura de si mesmo, crescida de uma
verruga) e dos roteiros de Kaufman
(como em "Quero Ser John Malkovitch", indústria cultural pretensamente ao avesso, convertido em
drosófila, HC ocupa o cérebro do
ídolo, Michael Jackson). A perspectiva plural não é necessariamente
poliédrica e sofre, em certa medida,
do mesmo mimetismo que caricaturiza, enfraquecendo seu retrato do
esboroado sujeito moderno.
O HOMEM QUE NÃO GOSTAVA DE BEIJOS
Autor: Edward Pimenta
Editora: Record
Quanto: R$ 27,90 (126 págs.)
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