São Paulo, sábado, 17 de março de 2007

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FABIO DE SOUZA ANDRADE

Sendo Horace Catskill

Na naturalidade do narrador, há algo de cosmopolitismo poseur que estaca na superfície das aparências

POLIMORFO SIM, perverso sim, Horace Catskill é um anti-herói pós-moderno. Em sua falta de determinações, homem sem qualidades, lembra Zelig, o homem-camaleão de Woody Allen. A diferença é que o protéico HC -protagonista de "O Homem que Não Gostava de Beijos", primeira coletânea de contos do jornalista Edward Pimenta- não se limita a descartar, por mimetismo, tiques e personalidade.
Quando se reinventa, troca de pele, ressurgindo, aos saltos aleatórios, faceiro e safado, como sintoma e retrato de sua(s) época(s). HC não faz caso de tempo ou espaço.
Em suas reaparições, contudo, não escapa de um roteiro mais ou menos estrito dos mitos da cultura de massas contemporânea: as coxas de Madonna, as narinas de Michael Jackson, o politicamente correto nas universidades, ácido e sexo em profusão, nos anos 1960 (e sempre), terroristas e assassinos em série, pornografia. Pode ser o clássico soldado japonês que, distraído, perdeu o anúncio do fim da guerra, o assassino frustrado do papa, um bibliotecário que trafica o acervo de uma biblioteca pública em proveito próprio ou o desconhecido que contamina com o HIV uma rainha do sexo explícito.
O ponto de vista errático -à maneira de Julian Barnes que, mesclando história e ficção, para contar a "História do Mundo em 10 Capítulos e Meio", alterna, por exemplo, as impressões de um cupim embarcado na arca de Noé com a crise mística de um astronauta que pisou a Lua- se equilibra sobre um fascínio pelo diário da corte. Os aspectos grotescos e variados do presente são bebidos na fonte, o umbigo (americano) do mundo, e as referências à periferia (a satisfação sádica dos senhores de escravos, o acanhamento provinciano do enterro de um boxeur argentino) aparecem, econômicas, engolidas pela luz ofuscante da matriz.
Na naturalidade do narrador, imune aos choques e às surpresas das extravagâncias, há algo de cosmopolitismo poseur que estaca na superfície brilhante das aparências, circo de aberrações ou ciranda de opulência. Porque Pimenta, promissor, conhece seu ofício, escreve bem e constrói com habilidade cada uma das fachadas para HC (o excessivo é tema e não se transmite ao estilo, enxuto e eficiente no humor verbal), o livro não se esgota no mero divertimento.
Mas fica a pergunta se, pela mesma razão, o virtuosismo não ganha um primeiro plano indevido, em seus ecos de Will Self (o soldado japonês é colonizado por uma miniatura de si mesmo, crescida de uma verruga) e dos roteiros de Kaufman (como em "Quero Ser John Malkovitch", indústria cultural pretensamente ao avesso, convertido em drosófila, HC ocupa o cérebro do ídolo, Michael Jackson). A perspectiva plural não é necessariamente poliédrica e sofre, em certa medida, do mesmo mimetismo que caricaturiza, enfraquecendo seu retrato do esboroado sujeito moderno.


O HOMEM QUE NÃO GOSTAVA DE BEIJOS    
Autor: Edward Pimenta
Editora: Record
Quanto: R$ 27,90 (126 págs.)


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